15 de outubro de 2024

O Rock in Rio Avisa: O Rock Morreu!

Essa edição 2024 do Rock in Rio deu o que falar. Eu não assisti nada, não ouvi nada e não faço ideia de quem tocou e em que palco subiu, tirando, claro, os artistas que viralizaram nas redes.

Sinceramente não estou nem aí se teve mais sertanejo e funk carioca do que rock. Sinceramente não estou nem aí pra quem paga pra ir nesses lixos de festivais. Eu generalizo porque não existe mais tanto artista significativo para tanto festival.

No caso do Rock in Rio, deixei de dar créditos a ele depois da 2ª edição que aconteceu em 1991 no Maracanã. Mais que isso, depois do ‘Rock in Rio Lisboa’, passei a dar risada a cada edição que anunciavam.

O Rock in Rio 3, que aconteceu em 2001 de volta à Cidade do Rock, eu fiz cobertura pelo site que eu trabalhava (tantofaz.net – que não existe mais) e já achei uma porcaria. Assisti pela televisão e me decepcionei. Assim como nas outras duas edições em que vários amigos foram, nessa 3ª vários estavam lá e falaram muito mal da organização e da qualidade do som, que estava baixo com diversos autofalantes espalhados pelo público. Um desses amigos, inclusive, disse que se arrependeu de ir porque queria mesmo era ver Foo Fighters, mas que, por causa do som chinfrim, o show foi uma bosta.

Quanto aos artistas escalados para 2024, isso é coisa de gente que não está nem aí para o público e isso ficou claro quando uma das organizadoras disse que o Rock in Rio é mais que um festival musical, é uma experiência imersiva. Oi!?!

Fato é que a organização desse pseudo festival de música já sabe como lucrar com o evento e sabe que, pra isso, a música é o de menos. O lucro vem da transmissão de TV e internet, e das empresas que alugam espaço para vender comida, bebida, suvenires, roupa, acessórios entre outras bobagens. Até o copo o qual você vai usar pra beber os líquidos que você compra são caríssimos e se você não os tiver, não bebe.

Numa boa, sem querer ofender as pessoas que foram agora e em outras edições passadas desse e de outros festivais, azar é o delas se resolveram gastar o suado dinheiro nesses lixos.

É preciso saber de um fato importante: são poucos artistas que sabem fazer show em festivais (hoje quase nenhum). Nem todo mundo é Queen! Então, se você quer ver seu artista preferido, certamente não será em um festival que você vai se satisfazer.

O rock morreu nos primeiros anos do século XXI e o que temos hoje são zumbis que são alimentados por gente que acha que ir a um show é ainda uma experiência única. Já foi, mas não é mais. Em tempos de padronização de tudo, a música, os artistas, as composições e os festivais, não fogem disso.

Os artistas que um dia foram relevantes, e que ainda estão na ativa hoje, só querem juntar mais dinheiro para garantir seu futuro e de sua família. Não querem mais saber de fazer músicas fora da caixinha, de fazer algo diferente, de experimentar. Hoje fazem o básico. Pior, ao invés de assumirem que não estão mais interessados em serem criativos, continuam a lançar álbuns com 15 faixas que, em muitos casos, as 15 são uma porcaria. Nando Reis inclusive lançou, recentemente, 30 músicas! 30!!! Até escutei, mas não dou mais que nota 4 para qualquer uma delas. Mesmo tendo Peter Buck (R.E.M.) na guitarra, nada se salva. Não tem sequer 5 que você possa falar “essas são mais ou menos”. Artistas hoje fazem música sem tempero, sem razão e sem tesão.

Tomando o Rock in Rio como exemplo, não haverá mais festivais musicais com line up de relevância, pelo contrário, daqui uns anos esses festivais estarão recheados de bandas cover porque não haverá mais sentido em existir novos artistas de rock. E não estou querendo depreciar os festivais, até porque futuramente será muito mais divertido assistir a um show do Queen cover do que a um show chulé do Coldplay (que hoje já é um veterano).

O rock hoje não faz mais sentido como um dia fez. O rock hoje não é algo tão desejado pelo jovem como um dia foi. Os tempos mudaram, os contextos mudaram. Os jovens hoje tem uma porção de outras coisas que os distraem e que representam o contraditório. O rock deixou de ser rebelde há décadas. Deixou de ser uma fuga há décadas!

Festivais que prestigiam o rock estão fadados a acabar. Entre tantos conhecidos há o Coachella, Reading, Glastonbury, Lollapalooza e o próprio Rock in Rio que precisarão se reinventar se quiserem sobreviver às próximas décadas. O RiR já começou a fazer isso incorporando esse monte de gênero musical duvidoso. Só falta agora mudar o nome, algo que dificilmente irá fazer. Minha sugestão é que as edições futuras poderiam se chamar Rock in Rio Sertanejo ou MC Rock in Rio ou, até mais plausível, Rock in Rio Qualquer Nota.

8 de outubro de 2024

O Rock Farofa dos anos 1990

 

Os anos 1990 foram bem intensos. Tão intensos quanto a década anterior que pipocava novidades todos os dias, seja na cultura pop, no comportamento ou nos costumes. Inclusive a virada dessas décadas ficou marcada pelo fracasso da Alemanha Oriental com seu Muro de Berlim que prenunciou o fim do comunismo da União Soviética. Dessa forma entramos nos 1990.

No Brasil, a MTV foi o ponto de referência, principalmente, entre 1993 e 1998. Bem o miolo da década.

A música – que é o objeto deste texto – começou já sem muita novidade. No caso do Brasil, a década começou com o pé esquerdo por conta das bandas cover e terminou da mesma forma porque, depois do surgimento de alguns nomes já medianos entre 1997 e 2000, o rock brasileiro afundou de vez. Dois fatores ajudaram no fim do rock feito no Brasil, um sendo consequência do outro: 1º) A falta de criatividade e talento; 2º) O desinteresse das gravadoras (algo óbvio). Junto a esses dois fatos, ainda teve o surgimento do Naspter, que bagunçou o mercado fonográfico mainstream, e a chegada da internet caseira via cabo.

Mas o que quero falar aqui é da qualidade já ruim do rock feito durante os 1990, mas não digo apenas no Brasil e sim no mundo. A década começou com duas cenas que chamaram a atenção que era a Madchester com Stone Roses, Happy Mondays, Charlatans e outras; e o rap jazz com grupos como Arrested Development, Guru, A Tribe Called Quest, De La Soul e outros.

Dessas duas cenas, minha preferida era exatamente o rap jazz porque os nomes da Madchester eram todos bem medianos e o único bom nome, e o mais forte deles, era o fabuloso Stone Roses. Mesmo o SR já não tinha uma sonoridade única, e suas músicas já remetiam diretamente às suas influências. A mesma coisa aconteceu com Lenny Kravitz que apareceu com um belíssimo disco – até hoje o melhor de sua discografia – mas que a sonoridade também remetia a tantos outros artistas.

É bom lembrar também que com o heavy metal aconteceu a mesma coisa com aquele bando de grupo de metal farofa laquê, um pior que o outro.

Resumindo: a década de 1990, tirando o rap jazz, começou com novas bandas que já não tinham uma sonoridade nova ou única. Tudo que você escutava nesse período te remetia a nomes das décadas de 1960, 70, 80 e, dessa forma, a década se seguiu.

A partir de então a originalidade no rock acabou. Teve sim alguns nomes que se sobressaíram a isso, mas foram poucos, bem poucos. Pra mim, a tão querida cena grunge não era muito diferente do metal laquê. Muita pose e pouca música. Como disse certa vez Kris Novoselic (ex-baixo Nirvana), a cena grunge nunca existiu de fato, era apenas algo criado por jornalistas. Tirando alguns poucos grupos, de 3 a 5 no máximo, o resto era lixo. O que valia alguma coisa mesmo era Melvins, Nirvana, Mudhoney e só. O resto era muita pose pra nada.

Soundgarden, Stone Temple Pilots, Alice in Chains e outros eram uma porcaria que não traziam nada de novo. O STP tinha aquele vocalista que adorava ficar sem camisa e fazer pose. Podia muito bem fazer teste para cantar no Cinderella, por exemplo. A mesma coisa digo do Chris Cornell e do Eddie Vedder.

Não dá pra você dizer que sua banda tem influência de Soundgarden, seria muita falta de conhecimento e pobreza sonora afirmar isso. Melhor dizer, por exemplo, que é influenciada por Black Sabbath e Deep Purple.

O próprio Foo Fighters, que é pós-grunge, é mais original e deixa esses grunges todos com vergonha.

A impressão que dava, lembrando que eu estava na MTV durante todos esses anos, é que era uma corrida de cegos entre essas bandas e suas gravadoras. Quem iria lançar o disco mais mais ou menos? Quem iria fazer mais pose? Quem iria fazer mais show?

Eu era fã de Nirvana, mas mesmo ele não tinha originalidade no som. As composições e os discos eram bem melhores que de outros grupos, mas sempre que você escutava vinha na cabeça Sex Pistols, Husker Du, Pixies, Killing Joke, Clash, entre outros nomes dos 70 e dos 80. Mesmo assim Nirvana era a mais original de todas ao lado exatamente de Melvins e Mudhoney.

Ao contrário das outras bandas, o Nirvana era sarcástico e gostava mesmo de se divertir. As outras, como disse, se preocupavam mais com a pose, a cara de mau e com o condicionador que usava no cabelo.

A força dessas bandas era tão nula que, com o suicídio de Kurt Cobain e o fim no Nirvana, a mídia nem quis cogitar outra hipótese a não ser a morte da cena grunge. Tudo bem, o Pearl Jam conseguiu seguir em frente com discos irregulares, mas tudo que lançou depois se tornou irrelevante. Gosto do disco Binatural, mas você pode juntar esses lançamentos todos que não dá uma coletânea de 12 músicas.

Até o Red Hot Chili Peppers se enfiou na lata do lixo depois do lançamento de Blood Sugar Sex Magic. Foi ladeira abaixo e é assim até hoje com lançamentos insignificantes que também não rendem sequer uma coletânea de 15 músicas. E olha que eu escuto RHCP desde “Mommy, Where’s Daddy”, e comprei Freaky Styley, The Upflit Mofo Party Plan, Mother's Milk e Blood Sugar no período de seus lançamentos. O FS e o UMPP dei sorte de terem sido lançados pela EMI Brasil mesmo sem ninguém conhecer o grupo.

Enquanto essas bobagens todas de grunge e britpop eram enaltecidas pelos “jornalistas especializados” e pelo público, eu preferia ficar na minha com grupos como Morphine, The Presidents of The USA, Possum Dixon, Squarrel Nut Zippers e o veterano R.E.M. que continuou a lançar bons discos durante a década.

No caso do Presidents, foi uma grande descoberta. Na época do 1º disco chegou na MTV um show do grupo realizado embaixo do Monte Rushmore e, entre minhas funções, estava a de assistir a todos os shows internacionais que chegavam na MTV pra avaliar, legendar, separar em blocos, etc. Esse show me deixou de queixo caído! Era um trio formado por um guitarrista que tocava com 3 cordas, um baixista de tocava com 2 cordas e um baterista que tinha uma bateria com poucas peças. E mesmo com tudo isso, a sonoridade do grupo deixava aquelas bandecas do tal hardcore californiano (que de hardcore não tinham nada) no chulé. Mas põe chulé nisso!

Com esses grupos acontecia a mesma coisa: era muita pose pra pouco som. Pennywise, No Fun at All, Biohazard, Offspring, Bad Religion, NOFX, Rancid... tudo porcaria! Eu assistia aos clipes, a algumas apresentações ao vivo, ouvia os discos e chegava a ficar com vergonha alheia de tão ruim que era.

Daí vem um grupo com uma guitarra de 3 cordas, um baixo de 2 cordas, fazendo o mais puro punk rock divertido e com muita ironia e colocava esse bando de grupo tosco no chulé!

Pra terminar essa fria análise, e pra ver como as coisas foram exatamente assim, é só perceber que tirando um ou outro nome dos anos 1990, os novos grupos surgidos após a década, a maciça maioria tem como influências os grupos dos anos 1980, 1970 e 1960. Até porque seria uma vergonha dizer ter como influência o Offspring ou o Oasis. Pelamordedeus, né!?

PS: O tal rock alternativo também não fica de fora dessa falta de qualidade. Weezer, Pavement, PJ Harvey, Primus e até Sonic Youth também adoravam fazer poses. Muita gente usava camisetas do SY, mas escutava no máximo umas 3 músicas do Goo. Sonic Youth é chato pra caceta! Como todos os nomes citados neste texto, nenhum desses grupos alternativos deixou legado.

8 de setembro de 2024

Série O Resgate da Memória: 57 - O Rock de Brasília (junho 1983)

Em junho de 1983 foi lançada a revista Mixtura Moderna, publicação carioca pioneira em colocar o jornalismo musical brasileiro definitivamente nos anos 1980. As reportagens traziam o que tinha de vanguarda naquele momento. Logo depois o nome mudou para Pipoca Moderna, mas a revista não durou muito. 4 meses depois, em outubro, surgiu a Roll, que foi nossa grande revista musical entre 1983 e 1985, quando surgiu a Bizz.

Mas voltando a esta reportagem, ela foi de suma importância para o que estava acontecendo em Brasília e foi a primeira vez que as cenas do eixo Rio-São Paulo, e outras capitais, souberam o que estava acontecendo na capital brasileira. No cerrado a empolgação entre o pessoal foi absurda, primeiro com a ida do Hermano à BsB e ansiedade em ver como a matéria ficaria e depois, quando saiu, parecia algo de outro planeta.

É preciso entender que, como disse no início, não havia mídia impressa dedicada ao rock do anos 80 no Brasil até a Mixtura surgir e assim que surge já logo no 1º número sai reportagem sobre o underground brasiliense!!! Era praticamente como lançar um disco ou poder dizer que já era músico profissional! Era algo fenomenal, realmente fora do comum!

Claro que haviam outras revistas, como a Som Três, mas uma revista segmentada com foco nas novidades da década de 80, naquele momento, só a Mixtura. 

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Mixtura Moderna - Nº 1 - junho/1983

AI DE TI, BRASÍLIA

Por Hermano Vianna

Da capital do poder e do tédio, uma injeção de energia para sacudir as rachaduras. O cerrado contra-ataca

Quem diria! Os primeiros punks brasileiros nasceram em Brasília, à sombra do poder, e eram quase todos filhos de figuras importantes do governo federal. Se você for um punk paulista ou carioca que gastou suas poucas economias pra comprar a Mixtura Moderna certamente estará com ódio desta afirmação. Você pode queimar a revista ou, eu prefiro, escrever uma carta injuriada dizendo que eu não entendo nada de punk. Tudo bem, eu já li vários fanzines paulistas que me dizem o que é ser punk, o que é anarquia e até mesmo como usar uma suástica. Não tenho nada contra as etiquetas sociais. Mas também não posso fazer nada se desde 77 alguns brasilienses adotaram idéias, roupas e comportamentos punks. O que caracteriza cada um desses itens? Quem tem a verdade do punk? Provocados desta maneira o pessoal de Brasília me responde: punk não é uniforme, cara, é revolta E revolta não é privilégio do proletariado paulista ou do subúrbio carioca.

Punk é uma revolta sem planos de guerra detalhados, sem líderes estrategistas. Afinal, a proximidade do poder (se você ainda entende o poder como aquilo que acontece no Palácio do Planalto) não torna nem mais fácil, nem mais difícil, combatê-lo. É necessário sempre reformular as táticas, renegar os rótulos, destruir o lugar comum. Não é por um acaso que os brasilienses, anotem o que eu estou dizendo, fazem o rock mais ousado deste país.

Brasília é, desde a sua criação, causa das mais variadas polêmicas. Odiada por alguns, um sonho frustrado para outros, sua arquitetura continua a ser o símbolo máximo da ânsia modernista da alma brasileira (desde quando o Brasil tem alma?). Somos modernos e está acabado: vejam a capital que construímos. Não é de se estranhar que a construção de Brasília tenha se dado num governo que tinha por lema fazer o Brasil se desenvolver cinquenta anos em cinco. O que é ou pra quem serve esse tal de desenvolvimento, ninguém sabe. Brasília tem 23 anos e nenhum plano urbanístico pôde prever o que já aconteceu nesse meio tempo. É uma cidade bonita? Não sei, num cartão postal até que impressiona. Mas morar Iá é barra pesada. Brasília é fria, monótona, depressiva.

A capital da esperança ocupa lugares de destaque em estatísticas pouco comuns: é o local, no Brasil, onde ocorrem mais suicídios e onde se consome mais drogas. A característica principal da população brasiliense é a sua transitoriedade. Poucas são as pessoas que vão morar lá para sempre.

Todos estão na cidade contando os dias que faltam para acabar o mandato ou chegar a s férias, quando voltarão para seus estados de origem. Por isso você não pode formar uma banda de rock, por exemplo, sem levar em conta que o guitarrista vai se mudar pro Rio no meio do ano, ou que o pai do baterista foi convidado para ser cônsul em Adis Abeba. Nada, exceto a mesquinharia da grande política nacional, tem continuidade em Brasília. Mas esta situação começa a mudar. Não é preciso nenhuma campanha tipo I love Brasília para saber que alguma transformação já está ocorrendo. Um ouvido um pouco mais atento consegue perceber a criação de um sotaque próprio de Brasília.

É uma mistura incrível de entonações paulistas, cariocas, goianas, gírias de todos os lugares do país. As primeiras gerações que nasceram e se criaram no Distrito Federal já estão na casa dos 20 anos. São poucos, ainda, mas se os juntarmos com as outras pessoas, que moram há poucos anos em Brasília, mas que não estão a fim de ficar o tempo todo reclamando da falta do que fazer, já teremos um bom número. Esta gang está produzindo filmes, poesia, música e teatro que falam sobre sua cidade. Existe um número surpreendente de grupos de rock já formados. Curiosa e sorrateiramente, Brasília adquire o título de capital brasileira do rock’n’roll. A segurança da arquitetura brasiliense apresenta suas primeiras rachaduras.

O grande impulso inicial para a “explosão” do rock brasiliense foi a formação, em 78, do grupo Aborto Elétrico. Em Brasília é muito mais fácil você ter acesso à s informações musicais de outros países. Tem sempre alguém viajando, um amigo que mora no exterior e que pode mandar um disco ou o New Musical Express para ler. Quando quase ninguém tinha ouvido falar de punk, o Aborto já tocava músicas influenciadas por Pistols, Dammed, Clash, etc. E não era só isso. Numa letra eles anunciavam, para quem quisesse ouvir, as suas intenções: “desde pequenos comemos o lixo comercial-industriaI / mas agora chegou a nossa vez / vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês/ somos filhos da revolução / somos burgueses sem religião/ nós somos o futuro da nação / geração coca-cola”.

O Aborto tocava em qualquer lugar, ao ar livre, na frente das lanchonetes, onde quer que pudesse conseguir emprestado uma tomada. Foram os anos mais radicais do punk brasiliense. Outras bandas surgiram motivadas pelo sucesso não entendam essa palavra ao pé da letra) do Aborto Elétrico. Os nomes: Dado e o Reino Animal, Metralhaz, Os Vigaristas de Istambul (onde tocavam dois punks iugoslavos, filhos do embaixador daquele país, Blitz 64, Blitx etc. Não consegui saber direito a história destes grupos, alguns duraram poucos meses, outros só conseguiram sobreviver no meio de uma troca interminável de músicos.

Hoje os nomes mudaram e se multiplicaram. Você pode conhecer o s mais diversos estilos do rock contemporâneo escutando grupos como Elite Sofisticada, Gestapo, Las Conchas de Su Madre, Banda 69, Bambino e os Marginais, CIA, Fusão, Raízes da Cruz. Você pode ainda se surpreender com o jazz do Artimanha, ou como som inclassificável do Liga Tripa. Mas os grupos de rock mais interessantes de Brasília são: Capital Inicial, Legião Urbana, XXX e Plebe Rude. O Legião Urbana (Renato Russo, baixo e vocal; Marcelo Bonfá, bateria; Dado Villa-Lobos, guitarra) tem apenas meio ano de vida, mas todos os seus componentes já tocaram em outras bandas. Renato Russo é talvez o músico mais experiente do rock de Brasília. Autor da maioria das músicas do Aborto Elétrico, com o final deste grupo ele partiu para uma rápida carreira solo, acompanhado única e exclusivamente por seu violão. Renato, dono de uma voz poderosa, é o primeiro grande cantor do rock nacional. Também letrista de grande originalidade (“estou cansado de ouvir falar em/ Freud Jung Engels Marx, intrigas intelectuais / rodando em mesa de bar”), seus temas e imagens são uma reação direta às metáforas estúpidas que dominaram a nossa música popular em todo o decorrer dos anos 70. Ninguém quer mais ouvir falar em sensações das cordilheiras! A música do Legião Urbana está muito próxima do som de grupos como Joy Division, Public Image e Cure, suas principais influências.

O Capital Inicial (Heloisa, guitarra; Loro, guitarra; Flavio Lemos, baixo; Fê, bateria) já foi chamado pelas más Iínguas de Talking Heads do Planalto; pra mim, isso é elogio. Mas o apelido não tem muito a ver. O Talking Heads é apenas uma das influências, talvez de destaque, numa lista que inclui Cure, U2, Gang of Four, funks e baião. O trabalho das duas guitarras é fundamental para a caracterização do som do grupo. Nada de solos. Seu espaço é preenchido com riffs funky e acordes preciosos. Os vocais são feitos principalmente (pois todos cantam) pelos dois guitarristas.

As letras, na sua maioria compostas pelo baterista Fê, que também foi do Aborto Elétrico, são agudas reflexões sobre o cotidiano da juventude brasiliense. Nada escapa (“quero soltar bombas no Congresso / fumo Hollywood para o meu sucesso / sempre assisto a Rede Globo / com uma arma na mão/ se aparece o Francisco Cuoco / adeus televisão“), nem mesmo a figura de Dom Bosco, um místico que sonhou profeticamente com a construção de Brasília (“O mal já está feito / deve existir algum jeito / que tal elegermos um prefeito / e matá-lo com um tiro no peito?“).

Estas letras já deram o que falar. É óbvio que a maioria não passou na censura. Mas não fica por aí. O Plebe Rude (André Mueller, baixo; Philippe Seabra, guitarra: Gutje Woorthmann, bateria; Ameba, Ana e Marta, vocais) foi preso em Patos de Minas, no período pré-eleitoral do ano passado, quando, num show dividido com o Legião Urbana, mostrou músicas como “Vote em Branco”. O vocal é o grande trunfo do Plebe Rude. O contraste entre a voz azeda do lead Ameba e o agudo das Plebetes, Ana e Marta, é explorado de uma forma super criativa. Absurdetes perdem! O som da banda é bem mais simples que o da Legião o e do Capital Inicial. Mas isso não é uma desvantagem. Torna sua música irresistível. É impossível ficar sem dançar. As letras são também inusitadas. Uma delas fala dos piratas do século XX, aqueles que andam com gravador e vídeo-cassete em punho.

A única música de amor do grupo mistura declarações enamoradas com cenas de sexo e karatê. Uma versão de “God Save The Queen” louva nosso presidente e seus ministros. Mas o grande clássico o do grupo fica por conta de “Bandas BSB”, uma irônica a autocrítica da cena de rock brasiliense (“eles pensam que são tão originais/ imitando uma moda de fora”). Esta música termina com um atestado de óbito: “o rock já morreu, agora você já sabe/ não pode ser ressuscitado”. Você deve estar perguntando o que é que essas bandas têm a ver com o punk. Nem os próprios componentes destes grupos sabem, ao certo.

Perguntados se ainda a se consideram punks eles não respondem que sim, muito menos que não. O punk é uma grande influência, uma fonte inesgotável de idéias e, talvez, um passado, do qual se lembram com prazer. Os componentes do XXX (Alessandro, bateria; Bernardo Mueller, vocal; Geraldo, baixo; Jeová Stemller, guitarra) não têm motivos para tantas dúvidas. Somos uma banda punk sim, dizem, mas isso se você entender o punk como um estilo em constante evolução. O som produzido pelo XXX é, dentre os grupos de Brasília, é que mais se assemelha ao punk paulista ou carioca. Mas não se enganem pelas aparências. Entre os seu s grupos preferidos, eles citam de cara bandas como XTC, Talking Heads e vários grupos de ska. As letras podem também lembrar o punk de São Paulo, mas refletem vivências completamente diferentes (“eu não agüento mais / está monotonia / o tédio está tomando conta / como uma epidemia”).

O XXX foi o único grupo o brasiliense e a se apresentar na televisão local, num programa chamado Brasília Urgente. As outras bandas já participaram de trilhas-sonoras de filmes e peças independentes, principalmente do cinema super-8 brasiliense. Desses filmes, o mais significativo é, sem dúvida, a Ascenção de Quatro Rudes Plebeus, produzido pelo Plebe Rude quando ainda não tinha o vocal feminino. O filme foi dirigido pelo baterista do Plebe, Gutje Woorthmann, e por Helena Resende (também vocalista free lancer) e ganhou o prêmio principal do último festival de Super-8 do DF. A estória do filme, que dura 40 minutos, gira em torno de uma banda de rock que fica milionária, é roubada pelo empresário e termina como gari, levando um som com pás, enxadas e vassouras.

O rock nacional vive um momento de grande excitação. Brasília é apenas um dos focos desta agitação musical. Centenas de bandas, surgida s em todos os cantos do país, disputam avidamente um lugar ao sol. A imprensa, quem sou eu para analisar suas secretas razões, entrou com tudo na promoção do “novo fenômeno”. Já produziram até mesmo um verão do rock! Mas escutar o tão propagandeado som destes novos grupos é, com raríssimas e honrosas exceções, uma grande decepção. A música é velha, sem pique, uma sucessão interminável dos mais mamados clichês, dos mais repetidos chavões. No meio de um clima estéril como este é um alívio (e isso não é tietagem barata), escutar as bandas brasilienses. Chamá-las de punks, pós-punks, new wave, não me importa. Quem quiser que dê o nome, quem quiser que invente o rótulo. Brasília, famosa pelo tédio que acompanha seu cotidiano e pelas maquinações engenhosas do totalitarismo versão tupiniquim, produz uma música surpreendente. Guerrilha sonora no planalto central? Nada disso, Brasília ainda é o cenário ideal para a ficção científica: o cerrado contra-ataca.

Pra terminar: o Plebe Rude, o XXX e o Legião Urbana ensaiam numa mesma sala, alugada a Cr$ 2 mil cruzeiros por cabeça, de um edifício comercial de Brasília. É claro que só podem começar a tocar (o horário é dividido fraternalmente entre as bandas quando as atividades normais do edifício foram encerradas. O endereço da sala, para quem quiser entrar em contato com essa troupe incendiária (inclusive o Capital Inicial), é: Ed. Brasília Rádio Center, sala 2090, W-3 Norte (Setor de Radiodifusão Norte) Brasília, DF, CEP 70000.

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Para ver fotos da Turma da Colina no Instagram (o maior acervo existente): abortoeletricooficial

Para escutar as influências diretas das bandas da Colina no Spotify: https://open.spotify.com/playlist/5JorMsk3fMH1uYsw3v6CMW?si=89e273e924404907

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24 de julho de 2024

O (fraco) Jornalismo das Redes Sociais

Abro este texto (também publicado no LinkedIn) com uma afirmação bastante radical, porém muito realista: o jornalismo das redes sociais está destruindo o jornalismo tradicional. A credibilidade dos grandes grupos de comunicação e notícias está em uma queda vertiginosa. São vários os motivos desta realidade, mas aqui quero me ater ao que acontece com o jornalismo que é feito para as redes sociais Instagram, YouTube e Facebook, hoje muito populares entre todas as classes sociais. Em dados atuais, de 2024, 144 milhões de brasileiros acessam o YouTube; 134,6 milhões acessam o Instagram; e 111,3 milhões acessam o Facebook.

Essa comunicação digital se tornou muito mais poderosa do que o rádio e a televisão juntos. A comunicação de massa está agora nos meios digitais dos Smartphones e das Smart TVs. As gerações nascidas a partir de 2000 não sabem mais o que é uma grade de programação de televisão ou rádio, não assistem mais TV como se assistia até meados dos anos 1990. Novelas hoje são séries ou estão hospedadas em plataformas de streaming; notícias são as que estão nas timelines dessas redes sociais populares; entretenimento tem de sobra no YouTube, TikTok e plataformas de vídeo e áudio.

Ainda hoje o jornalismo mainstream briga com o jornalismo independente que está cada vez mais forte, exatamente por causa das redes sociais. O mainstream custa a aceitar que houve uma mudança de comportamento na forma de se passar informação. Hoje não há como monopolizar ou manipular a notícia, e isso tem doído bastante nesses grupos de comunicação de dominaram o jornalismo tradicional por décadas. A história mostra que, na maioria das vezes, há relutância em relação ao novo.

Folha de São Paulo, Estado de São Paulo, O Globo, Correio Braziliense, CNN e outros grupos tradicionais de notícias até agora não se adaptaram ao novo, não sabem lidar com as redes sociais e com seu público, não só pela insistência em querer monopolizar a notícia, mas pela forma como todos eles fazem o jornalismo nas redes sociais. A começar pelo fato deles todos tratarem essas redes apenas como uma ponte para seus sites e portais. Escrevem as informações propositalmente incompletas para provocar o leitor a ir para o link sugerido, porém o uso das redes sociais não são o meio e sim o fim. As redes digitais não funcionam como a televisão com controle remoto.

Uma pessoa que entra no Instagram, não quer, poucos segundos ou minutos depois, ser levada a outro endereço eletrônico através de um link, ela quer resolver aquela publicação ali mesmo, onde está. “Para saber a matéria completa clique no link” não funciona e isso já é mais do que sabido, porém, os grupos insistem no erro, insistem em achar que Instagram, YouTube e Facebook são apenas uma ferramenta de transição quando, na verdade, são canais definitivos, que necessitam do conteúdo com começo, meio e fim. Difícil entender como essa percepção não chegou às redações.

Mas para quem ainda hoje, depois de décadas da implantação do jornalismo impresso para o computador, insiste em deixar reportagens não exclusivas fechadas para não assinantes, normal continuar a não entender o universo digital. Por que limitar reportagens que qualquer pessoa pode encontrar de forma gratuita apenas para quem pagar pelo conteúdo? Não faz sentido.

Qual o problema desses grupos tradicionais em se adaptar de forma correta às redes sociais?

Pior de tudo isso é escrever uma notícia errada (de forma proposital ou não) só para que a publicação tenha engajamento. Essa é uma prática que, infelizmente, se tornou comum. Há grupos que deixam a notícia errada, e há grupos que deixam por determinado tempo, para exatamente ter o máximo de interação possível, mesmo que ela seja negativa.

Há também uma nítida falta de experiência em querer trabalhar com o inédito e o exclusivo. Esse jornalismo das redes sociais também é um jornalismo preguiçoso, nada proativo. É um jornalismo que se basta com a notícia que surge na redação. Nitidamente não há interesse em aprofundamento, apuração, busca de novos personagens, novos pontos de vista, algo inédito e exclusivo. Esse é um jornalismo que na editoria cultural é conhecido como “reportagem de release”, ou seja, que é feita apenas baseada nas informações que constam no release divulgado pela assessoria de imprensa, sem procurar maiores detalhes ou fazer apurações.

Essa aparente preguiça é tão escancarada que é possível se deparar com a mesma manchete, a mesma chamada, o mesmo texto em diferentes contas de diferentes grupos de notícias. Eu mesmo já fiz diversos printscreen dessas manchetes idênticas.

Se todas as mídias falam que a lua rachou, porque não buscar um diferencial para uma notícia que todo mundo vai dar? Em maio de 2024 noticiaram que o ator Tony Ramos passaria por cirurgia intracraniana. Quando a notícia saiu, todos os canais de notícia correram para dar a informação, porém nenhum deles, sem exceção, trouxe detalhes como o motivo, o local, absolutamente nada. Apenas repercutiram o que a fonte inicial da notícia informou.

Passou-se dias sem ninguém dar qualquer outro detalhe: o que aconteceu, quando e como foi a cirurgia, como isso tudo aconteceu? Ninguém foi ao hospital atrás de notícias, ninguém foi atrás de familiares e amigos próximos. A mídia simplesmente esperou o boletim oficial ser divulgado pela assessoria de imprensa do hospital. Ou seja, “reportagem de release”.

Fica um questionamento: o jornalismo tradicional não sabe lidar com os meios digitais ou não quer lidar com eles?

Seja o que for, ao mesmo tempo em que o jornalismo tradicional trata as redes sociais como um modismo passageiro e apenas como uma ponte para os meios de seus interesses, de forma vergonhosa, deixa o trem da história passar.

 

24 de junho de 2024

Série O Reagate da Memória: 56 - Os Mulheres Negras (abril/1988)

 


 Aqui resgato uma boa entrevista com Os Mulheres Negras de André Abujamra e Maurício Pereira. Na ocasião a dupla lançava o 1º disco 'Música e Ciência' e era um trabalho completamente diferente do que acontecia na época. Fui a diversos shows da dupla, inclusive nos lançamentos dos discos, e lembro que no primeiro deles eu fiquei na frente do palco tentando entender como Abujamra fazia de sua guitarra uma percussão. Era algo realmente vanguarda pra época.

Na ocasião do lançamento do 2º disco, lembro que fui ao camarim após o show e que dei muita risada conversando com os dois. 

Os Mulheres Negras era realmente muito divertido!

Nesta transcrição da entrevista dada para a revista Somtrês, nº 112 de abril de 1988 mantive a ortografia antiga e possíveis erros de português e/ou digitação. O legal dessas entrevistas da Somtrês era que se falava de equipamento e, no caso d'Os Mulheres Negras, isso era algo fundamental!

Divirta-se com mais um resgate da memória!

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Um é guitarrista e estudante de música. O outro, ex-jornalista, toca sax. Mas, juntos, eles formam a terceira menor big band do mundo: Os Mulheres Negras.  André Abujamra e Mauricio Pereira têm truques capazes de transformar o sax de Maurício numa seção de metais, enquanto André sincroniza bateria, baixo e guitarra e ainda sola em cima. Isso, utilizando equipamento obsoleto e instrumentos da casa, como o rotoscópio e o Tambor 112. O resultado já conquistou São Paulo e prepara-se para ganhar o país inteiro. Numa entrevista para Somtrês. Os Mulheres Negras contam a Lu Gomes os segredos desta música deliciosa, capaz de entreter e encantar platéias médias em shows com 70% de peças instrumentais, temperadas por finíssimo humor.


SOMTRÊS: Quem são Os Mulheres Negras? Nome, idade, essas coisas.

ANDRÉ ABUJAMRA: Meu nome é André Cibele Abujamra, 22 anos, filho do Antônio Abujamra, grande diretor e ator de teatro. Faço faculdade de música (composição e regência). Também faço trilha para peça de teatro, já fiz As BlasFêmeas, fiz O Draculinha, vou fazer a próxima peça do Antônio Fagundes ... Tô batalhando esse lado de trilha sonora e, por outro lado, tô batalhando com a terceira menor big band do mundo, que Os Mulheres Negras.

SOMTRES: Quais são as duas primeiras?

MAURÍCIO PEREIRA: A gente sabe que tem duas, mas não podemos dizer com precisão quais são e nem o tamanho delas. Mas sabemos que a nossa é bem pequena e deve estar quase no terceiro lugar. Se um de nós sair, a banda passa para o segundo ou primeiro...

SOMTRES: Vai, Maurício, dá a sua ficha...

PEREIRA: Eu me chamo Maurício Pereira, tenho 28 anos, şou jomalista formado na USP em 80. Aí eu dei umas cabeça- das, e numa época que eu estava desempregado eu conheci o André e começamos a tocar juntos; isso faz uns quatro ou cinco anos. A gente tocou numa banda chamada Muscad'Xalote, que no começo era instrumental e depois ficou mais pop. Eu e o André nos conhecemos quando a gente estudava num curso de percussão do Daniel Slom...

SOMTRÊS: Então vocês se conheceram tocando música?

PEREIRA: É, tocando percussão... Aí, depois, paralelamente ao Muscad', há dois anos, eu e o André montamos um duo. Não era uma banda ainda, tocávamos música instrumental em bar. Só que a gente azucrinava muito com as músicas, não tocávamos standards do jazz, a gente tocava pop instrumental, Police, Steve Wonder, U2... Aí não deu pé. O pessoal de bar quer outra coisa ou a música tal como ela é, ou então jazz. Aí a gente pensou: já que estamos entrando pelo cano, vamos fazer as nossas próprias músicas. Aí compramos um pedalzinho de sampler e um teclado sampler, o Casio SK-1. O pedal segurava uma base, e aos poucos a gente foi virando uma banda, começou a dar certo, o público começou a notar a gente. Isso foi no final de 85...

SOMTRES: Quando foi a estréia como banda?

PEREIRA: Como banda foi em 86, no Madame Sată. A gente já chamava Mulheres Negras, mas ainda não éramos uma banda; ali virou uma banda com as nossas próprias músicas. E era basicamente música pop instrumental. Quer dizer, músicas curtas, de frases bem marcantes, bastante ritmo... Porque, geralmente, na música brasileira instrumental, ou o cara cópia jazz-rock ou Hermeto Pascoal: são as duas vertentes de cópia que tem... E a gente não estava copiando. Começamos a aparecer a partir daí.

SOMTRÊS: Como foi que você aprendeu a tocar sax?

PEREIRA: Bem, há uns dez anos comprei o meu primeiro sax-alto, um instrumento vagabundíssimo, e fui estudar num conservatório. Não me dei bem.

SOMTRÊS: Por causa do sax ou do ensino?

PEREIRA: Por causa do sax. Aí eu fui estudar com o Hector Costita e ele me mandou embora porque o sax era ruim. Foi tudo numa boa ... Aí descolei uma clarineta boa e fui estudar com o Rafael GaIhardo, da Sinfônica Municipal do Eleazar. Larguei muitas vezes a clarineta e troquei por um sax-tenor, um Selmer Mark VI, francês, que é o que eu tenho agora. Eu parei e recomecei muitas vezes, mas o fato é que, a sério, eu tô estudando faz três anos. Eu comecei de novo com o Rafael e fui estudar teoria e harmonia com o Gérson Frutuoso, que tocava no Papavento. Não tenho tido sorte com professores, porque não dá muito tempo pra estudar. Dá passei por três ou quatro caras, já passei pelo Roberto Sion, Mané Silveira . . . Agora eu estou a procura de um professor, mas continuo com o Gérson, estudando a parte teórica.

SOMTRÊS: E esse negócio de low- tech?

ABUJAMRA: É o seguinte: a gente começou a fazer música pra ganhar dinheiro, e começamos a comprar aparelhos eletrônicos da primeira geração, mas que já são obsoletos.

PEREIRA: Se você for ver, a gente é uma banda tecno-eletro-mecânica. A gente tem um trampo no palco, não tem sequenciador pra acompanhar. É tudo na hora, com o dedo.

SOMTRÊS: Quem faz as programações de baixo e bateria?

PEREIRA: É o André. Eu fiz só algumas baterias.

ABUJAMRA: As idéias para a bateria, melodia e baixo são sempre dos dois, mas como eu gosto de fuçar mais nessa parte, eu faço as programações e o Maurício me ajuda na concepção da programação.

SOMTRÊS: Vocês são muito influenciados pelo jazz. Como aconteceu isso? PEREIRA: Bem, ele estuda guitarra e eu sax, e os métodos sempre acabam sendo os de jazz. E a gente ouve muito jazz. Eu acho que o que leva um cara a ser instrumentista é ouvir jazz, que é a música instrumental mais importante.

ABUJAMRA: O que mais me influenciou no jazz foi o be-bop. Mas não foi só Jazz o pop, o rádio, ser de São Paulo. Nosso som é um som paulista . . . PEREIRA: Eu escutei bastante Charlie Parker, Dave Brubeck. Não que o rádio tocasse, é que me interessa. De rádio: como instrumentista, Lulu Santos. ABUJAMRA: Eu gosto muito do pessoal lá da Bahia, o Luiz Caldas, gosto também dos Titãs.

PEREIRA: Caetano e Gil. Pra mim eles são os maiorais, eles e os Beatles. Eu ouvia Beatles direto. Aí, depois, comecei a ouvir algum jazz, o Wheather Report, Keith Jarret e Chick Corea - que é o trivial simples, né? - Paulo Moura... Eu gosto de música de preto, acho muito boa.

"A gente é uma banda tecno-eletro-mecânica. Tem um trampo no palco, não tem seqüenciador pra acompanhar. É tudo na hora, com o dedo." (Maurício Pereira)

ABUJAMRA: O que acontece comigo é que eu não peguei muito essa geração. Eu escutei bastante Beatles, mas as minhas influências... Eu sou mais moleque. Morei um ano nos Estados Unidos, escutei muito country, e gosto muito de heavy metal. Minha guitarra tem muito a ver com heavy, tem muito a ver com be- bop, gosto de funk também, mas não cheguei a um estilo marcante ainda.

PEREIRA: Police. Acho que foi um negócio importante...

SOMTRÊS: E isso foi dar n'Os Mulheres Negras. Por que esse nome?

PEREIRA: O nome? A gente sempre tem dificuldade de responder essa pergunta. É sério. Na TV Cultura eles combinaram de nunca mais perguntar isso pra gente, temendo represalias.

ABUJAMRA: Porque a gente escolheu o nome, a gente não sabe, mas gostamos muito do nome.

PEREIRA: No fundo, Os Mulheres Negras são tropicalistas, ou pós-tropicalistas, qualquer coisa do gênero. O negócio é desmascarar, não ter mumunha. Uma das coisas principais é ser comunicável, ser simples. Por isso é que quando a gente foi fazer música instrumental, fizemos uma espécie de pop instrumental, um instrumental mais popular, um pouco mais fácil do cara ouvir, do cara entrar. O que não quer dizer ruim. Então a gente tá sempre preocupado em produzir música de massa.

SOMTRÊS: Isso não significa música pra pizzaria, né?

PEREIRA: Até pra pizzaria. Se tocarem nossa música em pizzaria eu fico lisongeado.

SOMTRES: O público se interessa por música instrumental? A falta de uma letra não desvia a atenção?

ABUJAMRA: Pelo que eu vejo nos shows d'Os Mulheres Negras, às vezes 70% do material é música instrumental, e só 30% é com letra. Ultimamente não, ultimamente tem sido meio a meio.

PEREIRA: Eu acho que tem uma espécie de preconceito . . .

SOMTRÊS: Não é preconceito... O rock brasileiro por exemplo, tirando os "ô- ô-ôs" de praxe, ele tem letra. Quer dizer, ele chama a atenção não pela música, mas sim pela letra...

PEREIRA: É, e nem tem grandes músi- cos. Só agora que tá começando a pintar. Os Paralamas são bons, o pessoal do Gueto são músicos legais, a Máfia do Skowa. Mas o forte não é a coisa musi- cal, que é um suporte pra poesia. A gente não, quase que a poesia é que é o suporte pra música.

ABUJAMRA: Nos nossos shows tem muita música instrumental e as pessoas saem com a impressão de terem escuta- do um show completamente falado. Porque as nossas músicas instrumentais são acompanhadas de uma explicação, a gen- te conta a história delas, e as pessoas conseguem entender, porque é pop- instrumental. Não tem 15 minutos de improviso de sax, 30 minutos de guitarra. É curta e grossa, a mensagem que a gente tem pra dar.

SOMTRÊS: E como é que vão indo os negócios?

PEREIRA: Vão indo bem. A gente tem um trabalho que é simples e criativo, e nem todo mundo que é criativo é simples. A gente é bem fácil de entender, não tem problema. Por isso o boca-a-boca se propagou rápido e a imprensa deu uma força danada pra gente.

SOMTRÊS: Vocês acham que o humor pertence à música?

ABUJAMRA: Eu não acho que o humor pertença a música. O humor pertence a tudo. Noventa e nove por cento das nossas letras é de dor de corno. Acontece que no palco nós somos umas figuras engraçadas. Eu sou grandão, gordão, ele é magrinho, a gente entra com uma roupa meio estranha, não se sabe se é elegante ou se é feia. Então a gente produz o riso.

PEREIRA: No começo não era pra ser. No tal primeiro show que teve no Madame Satã nós tocamos uma hora sentados, fizemos um puta barulhão sem olhar pra ninguém... Aí acho que pela própria estranheza eles começaram a rir. ABUJAMRA: Eu mexo muito na pedaleira, no sampler, né? Aí um dia eu tava descendo a mão e uma mulher começou a rir pra caramba, eu olhei pra ela e todo mundo começou a rir. Eu não sei o que é. Deve ser a figura da gente... Mas nós somos meio palhaços mesmo. A gente fala algumas coisas sérias, mas de forma cínica.

PEREIRA: Nós somos muito sérios. Eu vejo que o barco vai afundar se as pessoas não acreditarem n'Os Mulheres Negras. Mas, como ninguém é profeta em sua terra, nós somos um bando de palhaços.

SOMTRES: Alguma gravadora se interessou por Os Mulheres Negras? ABUJAMRA: A gente tá louco pra gravar um disco. É legal registrar o trabalho e o público também tá pedindo. A gente tem um esquema com a WEA, só que é uma coisa muito em banho-maria.

SOMTRES: Parece que vocês já conquistaram um público fiel.

PEREIRA: Estamos até providenciando um fã-clube. A gente precisa dar uma força pra essas figuras que nos acompanham pelos quatro cantos.

"Um dia eu tava descendo a mão no sampler e uma mulher começou a rir pra caramba, eu olhei pra ela e todo mundo começou a rir. Eu não sei o que é."

(André Abujamra)

SOMTRÊS: Vocês editaram uma fita cassete de muito boa qualidade. Falem

um pouco sobre ela.

PEREIRA: Ano passado gravamos quatro músicas no estúdio do Mário Manga (Premê) e sete ao vivo em um show no Masp, no meio do ano. Quem produziu foi o Peninha Schmit. É uma fita independente, sei lá como que é o nome.

SOMTRÊS: Como vocês conheceram o Peninha?

PEREIRA: Ele começou a seguir a gente pelos shows, começamos a conversar bastante, deu uns toques sobre instrumentos pra gente. E ele é o intermediário entre nós e a gravadora. Vamos ver se funciona.

SOMTRÊS: Quantas fitas foram vendidas?

PEREIRA: Acho que mais de cem. O que a gente tinha foi vendido. Muita gente quis, mas não tivemos como copiar.

SOMTRES: Como é que faz pra comprar a fita d'Os Mulheres Negras? PEREIRA: Quem quiser, escreva para a caixa postal 20.908, CEP: 01000, São Paulo, SP. Esta é a caixa postal d'Os Mulheres Negras. Diz isso aí: Os Mulheres Negras têm uma caixa postal. Quem quiser falar com a gente é só escrever. A Bossa Nova Discos também está vendendo a nossa fita. Fica na rua 7 de Abril, na primeira galeria. O preço é o de um disco.

SOMTRES: E os acessórios baratos que vocês utilizam? Foi uma opção por falta de grana ou foi uma opção estética?

ABUJAMRA: Rapaz, se você soubesse o que eu quero de instrumentos! É por falta de dinheiro, custa muito caro.

PEREIRA: Mas a nossa falta de dinheiro gerou uma coisa estética. Ninguém mais usa a aparelhagem que nós temos, porque já lançaram coisas muito mais modernas.

SOMTRÊS: Me falem dos instrumentos utilizados.

PEREIRA: Na boca do sax tem um microfone de lapela Sony ECM-30, que não é exatamente apropriado para isso, mas serve muito bem para o que eu quero. Esse microfone entra primeiro num delay digital da Ibanez (Delay II), depois um flanger da Boss (BF II). Daí vai para o SPX90 da Yamaha, que é um processador de efeitos, que dá naipe, reverber, um monte de coisa. Do SPX vai pra mesa e acabou. O SPX tem footswitch pra trocar os programas que eu faço nele.

ABUJAMRA: Eu tenho uma Gibson Les Paul Custom 1978, preta, três captadores. Também tenho uma Dolphin, brasileira. Pretendo comprar mais algumas guitarras, mas eu sou tradicionalista. Pra mim guitarra é a Gibson.

SOMTRÊS: E a Fender Strato?

ABUJAMRA: Nada. Não tem a ver comigo, não tem a ver com a minha mão... É estranho um guitarrista não gostar da Fender, né?

SOMTRES: Onde você comprou sua Les Paul?

ABUJAMRA: Em Oklahoma City, usada. Essa Gibson é o meu xodó. Coloquei uma ponte Kahler nela, com alavanca. Eu uso cinco pedais, tudo da Boss: um Digital Sampler Delay DSD-2, um Equalizer GE- 7, um Flanger BF-2, um Overdrive OD-1, e um oitavador (Octave OC-2), com que eu faço som de baixo na guitarra, e um Power Supply PSM-5. Depois eu tenho um pedal de volume estéreo (FV-60), de onde o sinal é dividido, indo uma linha para o amplificador e outra para o sintetizador de guitarra monofônico da Korg. Depois tem a bateria eletrônica (Korg Su- per Drums) sincronizada com o baixo eletrônico, que é o Bass Line TB-303, da Ro- land. Eu sincronizo a bateria e o baixo eletrônico com o sampler da guitarra, de modo que eu posso fazer guitarra, bateria e baixo e ainda solar em cima.

PEREIRA: Só aí já são quatro instrumentos. Aí eu ponho meu sax multiplicado por três e ficam sete instrumentos. Você vê: é a terceira menor big band mesmo. E ainda tem o Casio SK-1, um tecladinho sampler que a gente usa muito.

SOMTRES: Tô sabendo que vocês tam- bém andaram inventando alguns instrumentos. Quais são?

PEREIRA: O rotoscópio é uma das invenções. É um saxofone giratório que multiplica os harmônicos, o som bate em todas as paredes da sala. Tem o Oberheim de boca, o Tambor 112...

SOMTRÊS: Que é isso?

PEREIRA: É uma placa de rua que dá 112 timbres diferentes de percussão. O Oberheim manual é derivado da nossa bateria eletrônica. Quando ela é operada manualmente, através do sampler da guitarra, dá pra gravar alguns timbres.

SOMTRÊS: Que mais?

PEREIRA: A gente mexe não só com instrumento, mas também com a forma musical. Nós inventamos o brega científico, que é a música popular produzida em laboratório. Então a primeira parte tem uma escritura, tem uma harmonia simples que todo mundo entende, baseada numa seqüência de acordes que todo mundo tá careca de ouvir... A gente trabalha com o inconsciente coletivo das pessoas, a gente vai arrancar o que elas já têm lá dentro. Depois a gente faz algumas traquinagens, porque a gente não tem a responsabilidade de vender um milhão de discos. Nosso repertório é de trinta músicas, por enquanto. E quando tem letra, é letra de poesia popular.

SOMTRES: Como vocês se colocam diante do rock brasileiro?

PEREIRA: A gente se encaixa, porque rock é um conceito meio aberto. Logo, logo vai ter uma classificação pra nós. Eu não sei qual que vai ser. Acho que vão chamar a gente de tecno-pop, por aí. Mais pro pop do que pro rock. A gente vai ser difícil de classificar.

SOMTRÊS: E como vocês vêem o rock brasileiro?

ABUJAMRA: Eu tô começando a gostar mais, eu era meio radical, não gostava de quase nada.

PEREIRA: Eu acho que o rock tá com tendência de ficar meio pop. Se você pegar o novo trabalho do Lobão, o cara já foi mais roqueiro do que isso. Tá certo que ele é carioca, e o Rio é mais adocicado que São Paulo pra fazer rock, mas o disco do Lobão tem de tudo, é supervariado, não dá pra dizer que é um disco de rock.

SOMTRES: A música d'Os Mulheres Negras também é muito variada... PEREIRA: Pois é, isso é coisa de paulista. A gente não tem muita raiz. Na Bahia tem o afoxé, no Nordeste tem o xote, no Sul tem sei lá que coisa. São Paulo não tem nada...

SOMTRES: E, politicamente, como são Os Mulheres Negras?

PEREIRA: Acho nosso trabalho muito político mesmo. A nossa postura de querer fazer uma música simples e pra todo mundo, eu acho socialista; é democrático. A gente tá dividindo o pão musical, tá dando tudo mastigadinho, tome música boa, tome melodia, tome farra, tome fes- ta, letras que falam de coisas que acontecem. Fazemos muitas parábolas nas letras, mas elas são poesias boas sobre o real. São poucas, mas são boas.