5 de fevereiro de 2011

Duas Autobiografias

No Natal ganhei dois livros, duas autobiografias: Vida, de Keith Richards, e 50 Anos a Mil, de Lobão. Devorei-as em 25 dias. Podia compará-las, mas seria injusto. Como diz o outro, “vamos por partes”...

Primeiro é bom lembrar que não é fácil escrever sobre si mesmo, ainda mais quando sua história é cheia de acontecimentos, digamos, delicados e/ou cabeludos. Você já experimentou colocar no papel um segredo seu, ou uma história comprometedora? É difícil... imagine então escrevê-las em um livro, um documento que ficará pra sempre.

Se perguntarem pra mim o que vem à cabeça ao ouvir a palavra rock’n’roll, sem piscar digo Keith Richards. Na foto de meu primeiro RG, tirado em 1983, estou com uma camiseta com ele na estampa. Meu grande ídolo.

Lembro quando saiu o Talk Is Cheap em 1988, em meio a boatos de que Rolling Stones havia acabado porque Mick Jagger iria cuidar da carreira solo. Saí correndo para comprar e logo na primeira música imaginei Jagger aos pés de Keith pedindo um novo disco do Rolling Stones.


Basta bater o olho em Keith Richards para você saber que ele está nessa por amor. Sua figura já deixa claro que o que quer é tocar e não aparecer em tablóides. Keith não tem medo e nada a esconder, e esse é o grande diferencial de seu livro.

Fala de seus acertos, mas não esconde seus erros. Descreve com perfeição sua relação com as drogas e todas as boas histórias envolvendo heroína, álcool e tudo que tomou. Histórias divertidas que fazem rir (ou não). Também não esconde nada sobre sua relação com Mick Jagger.

Keith Richards parece um adolescente quando fala de seus ídolos e é impressionante seu conhecimento musical. Diz que chegou a assistir a um filme com Chuck Berry para ver as posições de seus dedos da mão esquerda para fazer igual. Despois que aprendeu, foi descontruir tudo aquilo para achar seu som. Maravilhoso, não?

Ele não se prende a explicar como foram feitos todas as músicas e discos, mas passa por eles de maneira maravilhosa, sempre mostrando o contexto, o que estava por trás de tudo, o que acontecia naquele momento descrito, seja o disco, uma viagem, um namoro ou uma composição, e a relação entre a banda.

Incrível também é ver a lucidez de sua memória, relembrando até mesmo alguns diálogos entre músicos, amigos, policiais e juízes. Em certos momentos deixa de se aprofundar em algum momento da banda para dar mais atenção ao lado pessoal, amoroso, falar das drogas, a relação com os amigos (alguns eram músicos de apoio do Rolling Stones). Fala quase nada de Bill Wyman, tudo de Mick Jagger, descreve perfeitamente como era Brian Jones e se mostra um grande admirador de Charlie Watts.

Fala muito bem do período em que passou na França e os bastidores de Exile on Main St. (também assisti ao documentário desse disco).

Há alguns poucos momentos chatos que dá para pular numa boa porque Keith começa a se aprofundar em detalhes técnicos de execução na guitarra e também de equipamento, coisa que para quem não toca, não interessa. Já no final, também por falta de assunto, Keith fala de um Safari que fez com a família, dá a receita de um prato que gosta, enfim, enche lingüiça.

O legal é que o livro não deixa de fora qualquer lenda, dúvida ou outro assunto que tenha acompanhado os Stones ou Richards durante a carreira. São 612 páginas bem editadas e com participação dos amigos em declarações que permeiam o texto, principalmente quando se trata de um assunto mais relevante para Keith.
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Desde O Inferno é Fogo, de 1991, Lobão mudou. Deixou de escrever músicas pop/rock para se afundar numa viajem de samba com rock e tri hop e muito, mas muito verbo. As estrofes curtas e os refrões simples foram substituídos por textos intermináveis de palavras, frases e idéias às vezes incompreensíveis. Em suma, essas músicas não têm o molde das FMs, não têm apelo pop. Nos anos 1990 o Lobão de Cena de Cinema, Ronaldo Foi Pra Guerra, O Rock Errou e Vida Bandida deixou de existir.

Em seus trabalhos pós O Inferno é Fogo há momentos bons, músicas que realmente gosto. Ninguém tem culpa se o que o público quer é o Lobão das letras objetivas e refrões simples. Eu, como fã, considero Cena de Cinema e Ronaldo Foi Pra Guerra obras primas, principalmente o Ronaldo...

Exemplos bem próximos a mim mostram ser difícil que um fã de “Me Chama”, “Corações Psicodélicos”, “Revanche”, “Canos Silensiosos”, “Noite Dia”, “Rádio Blá” e “Chorando no Campo”, goste também de “24 Horas”, “Do Amor”, “O Grito”, “A Véspera” ou “El Desdichado II”.

Encontrei Lobão diversas vezes na minha vida. A primeira vez foi quando tocou em Brasília ainda com Os Ronaldos, em 1984. Depois disso cheguei a entrar em seu camarim em outro show em Brasília, em 1986. Acho que fui a única pessoa de Brasília a comprar o Cena de Cinema. O entrevistei em 2000 para o tantofaz.net, e em 2004 (ou 2005?) trabalhamos juntos na mesma produtora. Ele fazia do Saca Rolha e eu trabalhava no Blog 21. Nos encontrávamos semanalmente.

Lobão tem muita história boa e ela se concentra entre o período em que entrou para o Vímana até 1992. Depois entra em um período conturbado, sempre renegando o rock – que sempre o sustentou – até se tornar independente e lutar pelo direito de ver CDs, DVDs e livros numerados. Mesmo assim essa década de 1990 não foi como os 1980.

50 Anos a Mil é um bom livro, mas peca pelo excesso exatamente porque Lobão perde muito tempo detalhando sua vida na infância e adolescência. Saber sobre a relação de seu ídolo com seu núcleo familiar é importantíssimo, isso diz muito em sua obra, mas há um limite. As 591 páginas bem poderiam ser, tirando daqui, cortano ali e resumindo acolá, 250. De 1975 a 1992 muita coisa acontece em sua vida, de forma intensa.

De uma forma ou de outra, está tudo no livro: a relação com a polícia e demais autoridades, toda história do Cena de Cinema, Ronaldo Foi Pra Guerra, os detalhes das canções que se tornaram hit, como “Me Chama”, sua desavença com Herbert Vianna, a amizade com Cazuza, Júlio Barroso e seus primeiros amigos na música, as drogas, o período na prisão, a bandidagem. Há assuntos tratados com superficialidade e outros mais detalhados.

Nitidamente faltou uma boa edição no livro. Algumas vezes o texto é confuso, e até mesmo histórias não são concluídas. Por exemplo, sua briga com Herbert que diz ter iniciado em 1983 e terminado em 1999. Como, por que e onde terminou? Eu como fã, fiquei com perguntas a serem respondidas. Mas como isso pode acontecer diante de uma biografia de 591 páginas? Pois é....

(Uma única comparação) Diferente dos depoimentos de amigos que há no livro de Keith Richards, que são pontuais sobre determinados assuntos, no livro de Lobão há depoimentos de alguns amigos, mas é uma coisa fria, muitas vezes até saindo de contexto.

Autobiografias são perigosas, mas nesse caso eu conhecia muito bem os protagonistas de Vida e 50 Anos a Mil. Confesso que fui surpreendido pela lucidez de Keith Richards, mas já esperava de Lobão alguns verbos a mais. Senão não seria Lobão...

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