13 de maio de 2014

Série O Resgate da Memória: 37 - Kid Abelha 1983 (por Fausto Fawcett)

Aqui está outra reportagem histórica. Ela foi publicada na revista Roll número 1, e escrita pelo então jornalista Fausto Fawcett que, em 1987, fez grande sucesso com o hit Kátia Flávia (A Godiva do Irajá).
NOTA: Em minhas transcrições sempre mantenho o texto original, incluindo os erros

KID ABELHA COM JEITO DE VIRADA
Revista Roll, nº 1, outubro/1983 

Por Fausto Fawcett




Eles surgiram discretamente no ano passado com a música Distração, que a princípio era só tocada na Rádio Fluminense. Depois, lançaram, pela mesma rádio Vida De Cão é Chato Pra Cachorro ao que se seguiu algumas apresentações no Circo Voador, Noites Cariocas e Estádio de Remo da Lagoa. Agora no entanto depois do lançamento de seu primeiro compacto estão envolvendo milhares de pessoas sem distinção de idade, sexo, classe ou credo musical. Um repórter da Roll foi entrevistá-los para tentar entender o fenômeno, mas não teve chance. Também foi enfeitiçado pelo Kid Abelha e Os Abóboras Selvagens.

Tomo um ônibus e vou prá Ipanema entrevistar o Kid Abelha. De repente entro em êxtase quando a voz de Paula, cantora do grupo, mistura-se com a velocidade do ônibus fazendo com que em minha memória vazem cenas, filmes, fotos, quadros, toda minha pintura íntima. O ônibus pára e eu deço meio seco, meio molhado, entro no edifício, no elevador, no apartamento.

A conversa começa com Leone (baixo), George (sax), Paula, Bruno (guitarra) e Beni (bateria) chegam depois. O grupo esteve em Canela, no Rio Grande do Sul, participando da Feira do Disco 83, uma espécie de vitrine armada pelas gravadoras para mostrar seus lançamentos, as tendências musicais, mil badalos. Pergunto alguma coisa a respeito da manipulação por parte das gravadoras, se o grupo foi embrulhado numa embalagem de marketing, se existe um esquema de fabricar conjuntos de rock descartáveis tipo-uma-música-e-some. Paula desmente total: “Não tem essa transa de marionete não. As gravadoras só manipulam quem elas inventam. Quem chega com uma transa pronta, algo estruturado, não sofre esse tipo de pressão. Eles só pedem pra você dizer, situar, definir a imagem”.

Enquanto no morro em frente um incêndio começa a se alastrar a conversa gira em torno de declarações cheias de ressentimento, atitudes facistas, papos brabos como os de Lobão acusando Chico Buarque de bobão ou Arrigo Barnabé diminuindo o trabalho de outras pessoas. Mas o que preocupa Leone é outro papo mais pesado, o da paranóia gerada por preconceitos: “Me preocupa o ufanismo, certo preconceito, contra eletrônica, tecnologia e tal. Nós queremos fazer sucesso como MPB e existe um público de rock que não fala inglês e tá a fim de informação musical nova. O espaço está aberto e nós queremos um lugar nele”.

No metiê pop do chiclete radiofônico algo de novo, algo charmoso. O Kid Abelha não limita seu trabalho com vulgares sonhos heavy-metais, progressivos ou punks preferindo enriquecer a fantasia do seu rock com outros elementos, outras artes: “O que distingue, o que nos distingue é o fato de termos informação intelectual, trabalharmos com vários enfoques. O que tem por aí é muito músculo musical e cabeça pequena” fala Beni e Leone completa: “Estamos começando a filtrar nossas informações". Esse é o grande barato do grupo, filtrar várias informações liquidificando tudo, refinando o que vier, da engenharia aos namoros, do surf à literatura passando pelo estudo de línguas e pelo balé.

Essas influências extras-musicais ficam nítidas em Paula que, estudando Comunicação Visual na PUC, vive às voltas com desenho, pintura, gravura, trabalhos gráficos e áudio-visuais. Essa experiência acaba refletida nas letras que, geralmente, injetam um cineminha na cabeça das pessoas – “quando ela cai no sofá / so far away / vinho à beça na cabeça / eu que sei / onde ela insiste em beijar / eu viro do avesso / “Paula fala: “A gente tem muito cuidado com as letras. Com tudo. Nenhuma música sai assim de um dia pro outro. As letras são trabalhadas, são estudadas as combinações com a música, melhor maneira de encaixar, esse tipo de cuidado. Apurando total, refinando”.


O incêndio tá firme e a janela parece uma lareira flutuante, uma parede negra com grafitis em brasa “Fazer amor de madrugada / Amor com jeito de virada / tá ficando tarde / no meu edredom / larga as contas que no fim das contas / o que interessa pra nós é... / fazer amor de madrugada / amor com jeito de virada / A paisagem urbana é misturada, estilhaçada. Temos que viver com fragmentos, pedaços de cenas, de objetos, de filmes, de pessoas. As emoções estilhaçadas, barato razante quando se capta um detalhe nalguma menina, um beijo, um gesto, um brilho, qualquer coisa. É bom ligar o rádio e ouvir uma música que te põe em sintonia com essa coisa urbana, energia de estilhaços, vibração atômica das ruas, dos apartamentos, de gente se misturando em amores rápidos.

Como diz Leone: “Procuramos transar impressões próprias do mundo. Inspiração cotidiana de televisão, violência, namoro, o que rola por aí. Flashes desse cotidiano, pequenos detalhes. Interessa a atualização dos sentimentos”. Algo de novo, charmoso, outro sabor na marcação viciada das rádios. Do baú de influencias musicais saem Pretenders-unanimidade no grupo-Men at Work e Police. Algumas preferências íntimas como o poeta americano Ezra Pound e o filme Menphisto. 

Paula adora fotos de moda, gosta de Escher, um holandês que gravava na pedra figuras em metamorfose pirando a nossa noção de perspectiva. Ela também gosta do trabalho de Ricardo Nauemberg. Ele transou a capa do primeiro compacto do grupo e também criou as belas aberturas das novelas Final Feliz e Louco Amor, além de ter trabalhado na nova abertura do Fantástico. Um grupo de inspiração visual mexendo com várias formas, movimentando um arsenal de linguagens pra oferecer em disco o êxtase dos sentidos. 

Edredons pintados, a voz de Paula sugerindo mil meninas, o sax envolvendo musas cinematográficas, logotipos misturados, letras injetando cineminha, atualizando os sentimentos. O grupo sobe pro estúdio, brisa morna, o incêndio parou, Paula toca Police no piano, as torres do Sumaré piscam, vem amor que a hora é essa. Kid Abelha, rock visual, êxtase dos sentidos.

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