No Natal ganhei dois livros, duas
autobiografias: Vida, de Keith Richards, e 50 Anos a Mil, de Lobão. Devorei-as em 25 dias. Podia compará-las, mas seria
injusto. Como diz o outro, “vamos por partes”...
Primeiro é bom lembrar que não é fácil
escrever sobre si mesmo, ainda mais quando sua história é cheia de acontecimentos, digamos, delicados e/ou cabeludos. Você já experimentou colocar no papel um
segredo seu, ou uma história comprometedora? É
difícil... imagine então escrevê-las em um livro, um documento que ficará pra sempre.
Se perguntarem pra mim o que vem à cabeça ao ouvir a palavra
rock’n’roll, sem piscar digo Keith Richards. Na foto de meu primeiro RG, tirado em 1983, estou com uma
camiseta com ele na estampa. Meu grande ídolo.
Lembro quando saiu o
Talk Is Cheap em 1988, em meio a boatos de que Rolling Stones havia acabado porque
Mick Jagger iria cuidar da carreira solo. Saí correndo para comprar e logo na primeira música imaginei Jagger aos pés de Keith pedindo um novo disco do
Rolling Stones.
Basta bater o olho em Keith Richards para você saber que ele está nessa por amor. Sua
figura já deixa claro que o que quer é tocar e não aparecer em
tablóides. Keith não tem medo e nada a esconder, e esse é o grande diferencial de seu livro.
Fala de seus acertos, mas não esconde seus erros. Descreve com
perfeição sua relação com as drogas e todas as boas histórias envolvendo
heroína, álcool e tudo que tomou. Histórias divertidas que fazem rir (ou não). Também não esconde nada sobre sua
relação com Mick Jagger.
Keith Richards parece um adolescente quando fala de seus ídolos e é
impressionante seu conhecimento musical. Diz que chegou a assistir a um filme com
Chuck Berry para ver as posições de seus dedos da mão esquerda para fazer igual. Despois que aprendeu, foi
descontruir tudo aquilo para achar seu som. Maravilhoso, não?
Ele não se prende a explicar como foram feitos todas as
músicas e discos, mas passa por eles de maneira maravilhosa, sempre mostrando o
contexto, o que estava por trás de tudo, o que acontecia naquele momento descrito, seja o disco, uma viagem, um namoro ou uma
composição, e a relação entre a banda.

Incrível também é ver a lucidez de sua
memória, relembrando até mesmo alguns diálogos entre músicos, amigos, policiais e juízes. Em certos momentos deixa de se aprofundar em algum momento da
banda para dar mais atenção ao lado pessoal,
amoroso, falar das drogas, a relação com os amigos (alguns eram músicos de apoio do Rolling Stones). Fala quase nada de
Bill Wyman, tudo de Mick Jagger, descreve perfeitamente como era
Brian Jones e se mostra um grande admirador de Charlie Watts.
Fala muito bem do período em que passou na França e os bastidores de
Exile on Main St. (também assisti ao documentário desse disco).
Há alguns poucos
momentos chatos que dá para pular numa boa porque Keith começa a se aprofundar em detalhes técnicos de execução na guitarra e também de
equipamento, coisa que para quem não toca, não interessa. Já no final, também por falta de
assunto, Keith fala de um Safari que fez com a família, dá a receita de um prato que gosta, enfim, enche
lingüiça.
O legal é que o livro não deixa de fora qualquer
lenda, dúvida ou outro assunto que tenha acompanhado os Stones ou Richards durante a carreira. São
612 páginas bem editadas e com participação dos amigos em
declarações que permeiam o texto, principalmente quando se trata de um assunto mais relevante para Keith.
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Desde O Inferno é Fogo, de 1991,
Lobão mudou. Deixou de escrever músicas pop/rock para se afundar numa viajem de samba com rock e tri hop e muito, mas muito verbo. As
estrofes curtas e os refrões simples foram substituídos por textos
intermináveis de palavras, frases e idéias às vezes incompreensíveis. Em suma, essas músicas não têm o molde das FMs, não têm
apelo pop. Nos anos 1990 o Lobão de Cena de Cinema,
Ronaldo Foi Pra Guerra, O Rock Errou e Vida Bandida deixou de existir.
Em seus trabalhos pós O Inferno é Fogo há momentos bons, músicas que
realmente gosto. Ninguém tem culpa se o que o público quer é o Lobão das letras objetivas e refrões
simples. Eu, como fã, considero Cena de Cinema e Ronaldo Foi Pra Guerra
obras primas, principalmente o Ronaldo...
Exemplos bem
próximos a mim mostram ser difícil que um fã de “Me Chama”, “Corações Psicodélicos”, “Revanche”, “Canos Silensiosos”, “Noite Dia”, “Rádio Blá” e
“Chorando no Campo”, goste também de “24 Horas”, “Do Amor”, “O Grito”, “A Véspera” ou “El Desdichado II”.
Encontrei Lobão diversas vezes na minha vida. A primeira vez foi quando tocou em Brasília ainda com Os Ronaldos, em 1984. Depois disso cheguei a entrar em seu
camarim em outro show em Brasília, em 1986. Acho que fui a única pessoa de
Brasília a comprar o Cena de Cinema. O entrevistei em 2000 para o tantofaz.net, e em 2004 (ou 2005?) trabalhamos juntos na mesma produtora. Ele fazia do
Saca Rolha e eu trabalhava no Blog 21. Nos encontrávamos
semanalmente.
Lobão tem muita história boa e ela se concentra entre o período em que entrou para o Vímana até 1992. Depois entra em um
período conturbado, sempre renegando o rock – que sempre o sustentou – até se tornar independente e lutar pelo direito de ver CDs, DVDs e livros
numerados. Mesmo assim essa década de 1990 não foi como os 1980.
50 Anos a Mil é um bom livro, mas peca pelo excesso exatamente porque Lobão perde muito tempo
detalhando sua vida na infância e adolescência. Saber sobre a relação de seu ídolo com seu núcleo familiar é importantíssimo, isso diz muito em sua obra, mas há um
limite. As
591 páginas bem poderiam ser, tirando daqui, cortano ali e resumindo acolá, 250. De 1975 a 1992 muita coisa acontece em sua vida, de forma intensa.
De uma forma ou de outra, está
tudo no livro: a relação com a polícia e demais autoridades, toda história do
Cena de Cinema, Ronaldo Foi Pra Guerra, os detalhes das canções que se tornaram hit, como “Me Chama”, sua desavença com
Herbert Vianna, a amizade com Cazuza, Júlio Barroso e seus primeiros amigos na música, as drogas, o período na prisão, a
bandidagem. Há assuntos tratados com superficialidade e outros mais detalhados.
Nitidamente faltou uma boa edição no livro. Algumas vezes o texto é
confuso, e até mesmo histórias não são concluídas. Por exemplo, sua briga com Herbert que diz ter
iniciado em 1983 e terminado em 1999. Como, por que e onde terminou? Eu como fã, fiquei com
perguntas a serem respondidas. Mas como isso pode acontecer diante de uma
biografia de 591 páginas? Pois é....
(Uma única comparação) Diferente dos depoimentos de amigos que há no livro de
Keith Richards, que são pontuais sobre determinados assuntos, no livro de Lobão há
depoimentos de alguns amigos, mas é uma coisa fria, muitas vezes até saindo de
contexto.
Autobiografias são perigosas, mas nesse caso eu conhecia muito bem os
protagonistas de Vida e 50 Anos a Mil. Confesso que fui surpreendido pela
lucidez de Keith Richards, mas já esperava de Lobão alguns
verbos a mais. Senão não seria Lobão...