20 de junho de 2020

Jogando Lembranças nas Linhas 1 (Brasília 1970-80)

1979: Renato, eu e Marcelo.
No chão André (meu primo) e Igor.
Lembro-me de 1982, quando eu voltava do colégio em um dia normal. Descia do ônibus na L2 norte, na altura da 402/403 – eu morava na 203. Subindo pela comercial da 403 um cara com uma sacola me parou. Ele estava com uma nota de 100 cruzeiros, aquela que tem o desenho da Praça dos Três Poderes, e me mostrando o desenho me perguntou se eu sabia como ele poderia chegar até lá. Falei que estava perto e indiquei o ônibus.

Foi aí que o doido começou a alucinar. Me mostrou a cédula e disse que no ano 2000 tudo aquilo, apontando para o desenho da Praça dos Três Poderes, iria explodir e que cada tijolo que caísse no chão seria uma pessoa morta. Que o Brasil iria inundar e só sobraria o Plano Piloto, que se tornaria uma ilha!

Desde cedo sou imã de gente maluca!

Minha Brasília era uma Brasília ainda inocente e inacabada. Uma Brasília de pouca violência, de ar familiar. Fui embora da capital em 1987, antes mesmo da chegada do McDonald’s, mas já era uma cidade cheia de faróis/semáforos e com uma população maior do que a imaginada para a época.

1978: A minha frente o bloco D e atrás
o bloco A.
Em 1987, na W3, não funcionava mais aqueles avisos eletrônicos indicando a velocidade ideal para passar por todos os faróis abertos. Pra quem não conhece Brasília, as avenidas  W3 (Sul e Norte), são retas e planas com extensão de 12km com muitos cruzamentos. E foi na W3 Sul que assisti, em 1976, a passagem do carro de bombeiros com o corpo de Juscelino Kubitschek, eu estava no ombro de meu pai e comendo um picolé Chicabom.

Nos jornais de Brasília do início dos anos 70, não havia página policial, se algum fato ruim acontecia, saia uma notinha em algum canto. A violência era quase zero. Você parava o carro na comercial para ir à padaria e nem sequer tirava a chave da ignição. Até mesmo ir ao supermercado não necessitava trancar o carro e fechar os vidros – Brasília é muito quente e lá carro no sol vira forno industrial!

A 111 Sul foi palco da minha infância nos anos 1970, costumávamos fazer jogo de futebol entre Superquadras e eles eram tensos. Meu negócio era o gol ou a zaga. Sempre fui bom goleiro. Os rolés de camelinho (como chamamos as bicicletas) se dividiam entre o futebol de botão, o futebol, jogo de Bete (Taco), as brincadeiras de pique e outras tantas atividades na rua. Em fim de semana eu só colocava o pé em casa para comer e dormir. Aliás, as portas dos apartamentos e casas estavam sempre abertas, ninguém passava chave.

1979: Brincando na 111 Sul. Eu,
meus primos e Marcelo.
Inclusive as plumadas (como chamam as entradas para pegar os elevadores), ficavam abertas e não havia interfones. Só aos poucos começaram as ser trancadas com chave, assim o porteiro fazia o anúncio pelo interfone, saia da cabine e ia abrir a porta pra você. E houve um tempo que nem o interfone do porteiro tinha.

Aí depois evoluiu para os interfones instalados nas plumadas, que foram uma enorme fonte de diversão pra mim, pro Igor, pro Marcelo e Renato. Nós quatro tocávamos o terror na 11. Interfone era coisa do futuro, coisa de americano em filme de ficção. Todos aqueles botões pedindo para serem apertados! Fazíamos um circuito de blocos (como são chamados os prédios das superquadras) apertando todos os botões possíveis!

Era muita bicicleta. Eu tinha uma chamada Caloi 5 branca, mas sem marcha, com guidom reto e pneu largo. A bichinha me acompanhou dos anos 70 até meados dos anos 80.

Na 203 Norte, já no início da minha adolescência pra onde mudamos em 1982, a bicicleta também servia para ir visitar as namoradas à tarde, ir à ensaios dos grupos, ao clube (éramos sócios do Iate Clube) ou à casa dos amigos que moravam no Lago pra usar a piscina. Também algumas vezes para sair à noite. A 203 fica perto da rodoviária, na perda de caronas eu ia a pé até lá e pegava o busão pra onde fosse o ponto de partida da noite.

Food's por volta de 1980:
Lugar da infância e de muitos shows.
Outra forma de conseguir uma carona era ir a o Rádio Center para ver quem estava ensaiando e de lá era direto pro balaco (depois, com o Filhos de Mengele, isso ficou mais fácil). O ponto final, na alta madrugada ou já pela manhã era o Giraffa’s. Eram três escolhas: o do Lago Sul, da 211 Sul ou 106 Norte. Também havia a opção do café da manhã no Aeroporto, que rea o único lugar que tinha alguma coisa 24 horas.

Também acontecia bastante de voltar pra casa a pé, bem como se fala em “Música Urbana”, gravada pelo Capital. Teve um período entre os 12 e 14 anos que eu ia dormir na casa de amigos e íamos pra rua, ver shows, tentar entrar em festas (mesmo pirralhos). Eu tinha que, inclusive, ver se minhas irmãs não estavam, porque não podiam me ver. Mas de qualquer forma, sempre tinha alguém da Turma que falava que tinha me visto.

Voltava do balaco para a casa dos amigos caminhando de madrugada e procurando toco de cigarro no chão hahaha. Como disse a preocupação com violência era pouca.

Bom lembrar que até 1985 era a Brasília do Regime Militar!


Inclusive durante um período em 1984 Brasília ficou em Estado de Sítio. Não podia haver uma mesa de bar com 4 pessoas ou mais que seria prisão. Tinha blitz na cidade toda – e Brasília nem é grande. Acredite se quiser, até espetos de churrasco eram apreendidos! Em BsB era normal famílias irem para as quebradas, para as cachoeiras, chácaras pra fazer churrasco, nadar e passar o domingo, daí você saía do Plano Piloto, no início da estrada já havia uma blitz, e lá a PM apreendia o que bem quisesse.

1979: Subindo na cúpula do Congresso.
Hoje proibidíssimo!
Até pelo menos metade dos 80 era como cidade do interior: todo mundo conhecia todo mundo. Cada turma tinha seus lugares próprios, mas havia lugares em comum. Os hippies, os playboys e os punks. E também todo mundo estudava com todo mundo, nas mesmas escolas, nas mesmas salas.

Fui muito ao Cine Drive-In, lá assisti “Os Embalos de Sábado a Noite”, “Tubarão”, “Grease” e todos grandes blockbusters dos anos 70. Eu era criança, mas entrava em todos os filmes. Ia a família inteira, e assistíamos os filmes dentro do carro e comendo sanduiches e milk shake. Era divertido pra cacete!

Brasília proporcionou algo bem legal: é gente de todos os cantos do Brasil e do mundo. Eu comia tutu de feijão na casa de um, macarrão na casa de outro, carne de sol, carneiro, vatapá, lasanha, chimarrão, tudo. Nos fins de semana dos anos 1970, além do clube e dos churrascos na casa dos amigos nos Lagos Sul e Norte, era comum meu pai (agrônomo) se juntar com outros amigos do trabalho – as mulheres, os filhos, era uma só família – e todos irem de caravana para as quebradas, atrás das cachoeiras ao redor de Brasília. Eram verdadeiras descobertas, lugares praticamente virgens. Esses fins de semana eram intensos, deliciosos e longos, muito longos.

1980: Eu segurando a caixa com
meu time de botão.
Tem algumas coisas que me fazem, até hoje, sentir a angústia do fim do domingo que era anuncio da segunda-feira e da escola. Ruim. Os sinais do fim da diversão eram Os Trapalhões, o Fantástico e os Gols do Fantástico. Inclusive o Fantástico era outra coisa, muito melhor, dentro de sua proposta inicial que o próprio nome diz. Eram reportagens sobre discos voadores e ETs, tinha muita ciência, mistérios, lendas. O Hélio Costa sempre fechava o programa com algo surreal, que virava assunto no dia seguinte.

Domingo também era dia de Roller Center, pista de patins que ficava no Gilberto Salomão, ao lado do supermercado Casas da Banha. O Roller era em um pequeno prédio circular, então era duas pistas em círculo: uma interna e coberta que só podia andar quem já tinha experiência e a pista externa, que eram maior e ficava os pebas rsrs. Eu, de vez em quando, ia com meu skate e nem sempre deixavam eu usá-lo. Roller Center bombava nos domingos a tarde.

Não lembro bem dos canais TV dessa época, mas tinha ao menos Globo, Tupi e TV Nacional (a educadora local que retransmitia alguns programas da TV Cultura). A transmissão dessas emissoras terminava meia noite e só voltava 6 da manhã. Em fim de semana ia até no máximo às 2h.

Eu assistia a todos os desenhos do Hanna-Barbera; Ultraman, Ultraseven e Spectreman; A Feiticeira, Jennie é um Gênio, Batman, Terra de Gigantes, Perdidos no Espaço, Túnel do Tempo, Jonny Quest, Thunderbirds.

1982: Minha irmã Fernanda  e eu
pós Copa do Mundo já na 203 Norte.
O futebol transmitido era do sinal carioca, acredito que até hoje, então havia muito mais torcedores de times cariocas do que de outras cidades e estados. Minha família é Palmeirense, mas só via o Palmeiras durante os Gols do Fantástico ou quando jogava com algum time carioca. Então adotei o Flamengo. Meu time de botão era o Palmeiras, mas tinha jogador de todos os times. Como não torcer por Falcão e Batista, Reinaldo e Éder, Casagrande e Sócrates, Zenon e Careca no Guarani, Carlos e Oscar na Ponte Preta; Roberto Dinamite e todos os goleiros! O grande ídolo era Leão, mas gostava muito do João Leite do Atlético Mineiro e também do Raul que jogou no Cruzeiro e Flamengo. Também era muito fã do Cantareli do Flamengo.

Nos anos 80 tinha Sala Especial. Tinham os filmes frustrantes em que as garotas só apareciam de calcinha e sutiã, mas tinham outros que surpreendiam com nudez frontal, mesmo que por poucos segundos!

Tinha um fator preocupante para o fim de semana: os postos de gasolina fechavam às 20h, e se minha memória não me trair, teve período que chegou a ficar fechado o fim de semana todo! Por isso que há histórias engraçadas de roubar gasolina de outros carros no meio da balada.

Brasília não tinha nada pra fazer, nenhum lugar pra ir depois das 22h/23h, mas não deixávamos de nos divertir e chegar em casa com o sol nascendo.

1985: 1ª sessão de fotos do Filhos de Mengele
Como disse, o início da minha adolescência foi marcado pelas fugas que fazia de minhas próprias irmãs que não me deixavam sair com o pessoal da Turma da Colina. Na mobilização das Diretas Já em frente ao Congresso, no dia da votação da emenda Dante de Oliveira, lá estava eu escondido – como poderia deixar de ir!

Também me lembro de um dia ter saído do trabalho, isso já em 1986 – quando eu era office boy em uma agência de comunicação e eventos que ficava no Edifício Venâncio 2000 – que fui embora a pé por causa da baderna que a população fazia na rodoviária por causa de um protesto contra o Sarney e seus planos furados. Foi um quebra-quebra generalizado. Vitrines de lojas sendo destruídas, carro de polícia para todos os lados, carros e ônibus pegando fogo, gente com pau e pedra na mão, polícia jogando gás. O bicho pegando e Sarney em uma missa na Catedral.

Parei na parte de cima da Rodoviária de frente para o Congresso, um corre-corre, lá embaixo uma zona e, de repente, a polícia joga fumaça no chão (não me lembro se era gás), e foi a hora que saí correndo pra casa sem mais pausas. Morava perto. Já dentro do apê, da sacada, cheguei até tirar fotos da fumaça subindo perto da rodoviária, mas perdi essas fotos...

1987: Aos 17 já com o pé em SP.
Camiseta comprada no show do Palace.
Uma das tantas coisas que fazíamos nessa Brasília que não tinha o que fazer, era ficar andando de carro sem rumo, fumando um e escutando as fitas em que gravávamos discos importados inteiros e montávamos coletâneas.

Teve o dia do jogo do Brasil contra a França na Copa de 1986 que não assisti. Essa Copa foi horrível, como a de 90. Era julho, meu primo e uma amiga de minha irmã Mila estavam em Brasília e fomos dar um rolé pela cidade. Lembro-me da gente em cima da cúpula do Congresso olhando em direção à Torre de TV, tudo vazio, nada de carros, silêncio...

Eu poderia ficar aqui muito mais lembrando tantas aventuras, porque histórias não faltam. Era muito gostosa a Brasília vazia dos anos 1970 e bastante intensa a dos anos 1980.

Pode parecer estranho, mas numa cidade que não tinha nada pra fazer, o difícil era ficar sem ter o que fazer.

Continuarei jogando lembranças nas linhas...

PS: Não poderia deixar de registrar a Fófi, a Bibabô,a Tube e o Cacareco.








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