Lembro-me dessa entrevista como se fosse ontem. Hoje ao lê-la, você até pode achá-la bobinha, porém para aquela época foi valiosíssima.
Não tínhamos notícias sobre nossos ídolos, não tínhamos imagens de nossos ídolos, não tínhamos nada além de alguns discos, fitas e informações de fichas técnicas dos LPs.
As revistas especializadas daquele período – leia-se Bizz e Roll – mal falavam do que não era comercial. Ramones então, nem pensar!
Nessa época o único show internacional recente tinha sido o do Siouxsie and The Banshees, em 1986. A vinda de Ramones foi uma coisa bastante inusitada, uma vez que quase ninguém conhecia o grupo – uma banda restrita ao gueto punk.
Algumas vezes, ao voltar pra casa a pé após os ensaios do Filhos de Mengele, junto com Danilo (guitarrista), costumávamos sonhar em assistir a um show do Ramones. Dessa primeira passagem da banda aqui assisti a 3 shows. E constatei ‘in loco’ que na plateia praticamente ninguém conhecia a banda, a não ser “Surfin Bird” tocada exaustivamente na 89 FM para promover o show e a coletânea Ramonesmania.
Esta entrevista que Kid Vinil fez é histórica – não à toa na foto da matéria ele está com o telefone de cabeça pra baixo, sem acreditar que havia conversado com Joey Ramone.
Antes de me mudar para SP, toda vez que eu vinha para a capital paulista, costumava gravar a programação de rádio (não lembro a emissora), porque Kid vivia tocando músicas e artistas que não se ouvia no Brasil. Levava as fitas para Brasília e fazia cópias para todo mundo.
Poucos dias após chegar a SP em 1987, tive a felicidade de acompanhar um amigo que ia tocar no programa Boca Livre, da TV Cultura, apresentado por Kid Vinil. Esse dia pra mim também foi histórico, pois além de conhecer Kid, também conheci Redson, um de meus ídolos no movimento punk de SP.
No 1º show do Ramones no Palace, por essas coincidências da vida, fiquei logo abaixo de Kid Vinil, que estava sentado no mezanino do Palace ao lado de Charles Gavin. Ao final do show pude agradecê-lo por esta entrevista que transcrevo aqui.
Ao longo dos anos o encontrei em diversas situações e também trabalhamos juntos na MTV. Inclusive certa vez fui à casa dele, quando eu era diretor do programa Urbano do Multishow, e tive a sorte de ver de perto sua coleção de discos. Cara de coração bom, gente boa, energia boa. Foi Kid quem me falou dos dois discos maravilhosos que o Doors lançou após a morte de Jim Morrison – e até hoje os escuto agradecendo a ele.
Fica aqui minha singela homenagem a essa figura que amava rock e que era uma verdadeira enciclopédia. Valeu Kid!!!
Folha de São Paulo
Edição de 30 de janeiro de 1987, página 26, Ilustrada
O Ramones chega e faz shows em SP
O grupo norte americano, precursor do punk-rock, desembarca hoje e se apresenta amanhã e domingo no Palace; o líder Joey foi entrevistado de Nova York, com exclusividade, por Kid Vinil
Uma das lendas vivas do rock’n’roll da última década aparecerá hoje, às 10h20 entre as brumas e má visibilidade do aeroporto Cumbica, em Guarulhos, 7 km ao norte de São Paulo: o Ramones, grupo precursor do movimento punk norte-americano, aterrissa com quilos e quilos de equipamento para se apresentar no Palace, amanhã e domingo, em dois horários 21h e 23h30. Os shows, anteriormente programados para o Rio de Janeiro e Buenos Aires foram cancelados. Na verdade, toda a excursão havia sido desmarcada devido as chuvas que inundaram completamente o Palácio das Convenções do Anhembi.
Na zona norte paulistana, onde era esperada a maior plateia da turnê. A WTR, produtora do show, acabou transferindo o local e confirmando a apresentação do Ramones unicamente em São Paulo.
Serão dois dias para conhecer (?) dois mais importantes grupos que surgiram na primeira metade dos anos 70. O Ramones, em início de carreira, acompanhou diversos nomes ligados ao “rock (?)”, que viria a desaguar, em uma de suas vertentes, no movimento punk, como oMC5, The Stooges (de Iggy Pop, que também deve vir ao Brasil) e Lou Reed (pós-Velvet Underground). Do quarteto original restam três nomes: Joey (vocais), Dee Dee (baixo) e Johnny (guitarra); o novato chama-se Ritchie (bateria). Todos usam o nome Ramones, mas não são irmãos. O “sobrenome” Ramones é um apelido, que membros da banda assumem e incorporam as suas vidas.
Por isso Joey não quis dizer seu verdadeiro nome (Jeffrey Hyman) na entrevista exclusiva que ele concedeu por telefone a Kid Vinil, músico e colaborador da Folha, do escritório de seu produtor, Andy Darow, em Nova York. Falou por meia hora de suas preferências musicais, das (?) do seu trabalho, dos instrumentistas que mais admira e mostrou um surpreendente gosto pelo heavy metal. Joey contou que os shows do Ramones não costumam ultrapassar trinta minutos, no tempo oficial. Mas, dependendo do público, o grupo é capaz de retornar inúmeras vezes ao palco e até tocar a noite inteira. É só uma questão de clima (possivelmente prejudicado pela burocratização do horário com dois shows por noite), que pode ser mais facilmente alcançado conhecendo-se as opiniões de Joey, o mais atuante porta-voz do grupo. A seguir a conversa de Kid com Joey. As observações entre colchetes são de Kid.
*
Kid Vinil – Seu nome real e sua idade.
Joey Ramone – Joey Ramone e idade não publicável. [Joey já havia mostrado desinteresse em atender o telefone, talvez pela expectativa de encontrar pela frente mais um repórter chato, que não conhece nada e só irá fazer perguntas pastosas. Não deveria, portanto, ter mandado essa como primeira pergunta, mas como pediram... Ele realmente não gostou e insistiu em manter o seu nome de guerra, não revelando o de batismo, se é que foi batizado. Então foi preciso “pegar fundo” e esperar a reação].
Kid – Recentemente foi editado o 10º LP do Ramones, “Animal Boy”. E quanto ao novo trabalho, como anda?
Joey – Depois de “Animal Boy” entramos novamente em estúdio e já terminamos oito faixas para o próximo disco, a ser lançado brevemente, com produção nossa e co-produção de Denny Ray.
Kid – Falando ainda dos dois últimos LPs, “Too Tough To Die” e “Animal Boy”, a banda incluiu alguns sons “hardcore”. O que você acha dos grupos que fazem “hardcore” atualmente?
Joey – Gosto demais do estilo “hardcore”, tem muita energia, principalmente ao vivo. Muitas bandas em Nova York fazem esse som e muitas delas abrem nossos concertos como a Crow Mags e Wild Kingdos, que entre as novas são duas das minhas prediletas.
Kid – Qual dos dez LPs do Ramones é seu favorito?
Joey – (Nota do blog: Joey lista os dez discos rsrs)
Kid – Sobre o concerto aqui no Brasil, você pode nos falar sobre a sua duração, já que normalmente vocês conseguem tocar quase trinta músicas em meia hora. Cite também algumas das músicas a serem incluídas.
Joey – Quanto a duração do show tudo depende do entusiasmo do público. Podemos tocar um grande número de músicas em meia hora, mas se voltarmos para um bis tocaremos outro punhado de canções. Se pedirem mais, tocaremos a noite toda, tudo depende da participação do público que encontrarmos pela frente. Quanto as músicas a serem tocadas, nunca temos um roteiro. Mas posso adiantar que tocaremos muita coisa dos nossos primeiros LPs, como do “Rocket To Russia”, do “Leave Home”, do “Road To Ruin”, enfim, um apanhado geral de todo nosso trabalho até chegarmos aos dois mais recentes álbuns.
Kid – Você sabia que “Surfin Bird” é um grande hit aqui em São Paulo?
Joey – Fico entusiasmado e surpreso, adoro cantar “Surfin Bird”.
Kid – Recentemente você andou produzindo alguns trabalhos de outras bandas, como foi isso?
Joey – Realmente. E uma delas foi Chesterfield Kings. Tenho planos futuros também para um LP solo, com a participação de alguns amigos.
Kid – Com a saída de Marky Ramone (bateria), logo vocês recrutaram Ritchie Ramone, mas os dois últimos LPs tem outras participações na bateria, quem são?
Joey – Além de Ritchie, tivemos a colaboração de um grande amigo, que por muito tempo tocou no New York Dolls e no Heartbreakers, Walter Lure, mas por fim acabamos efetivando o Ritchie Ramone.
Kid – Voltando ao concerto aqui em SP, gostaria de saber se vocês pretendem incluir teclados, como tem feitos em seus discos mais recentes.
Joey – Não, teclados de espécie alguma. Ao vivo é outra história. É muito mais ‘speed’, um negócio mais visceral, excitante. Faremos tudo em quarteto, com nossos amplificadores Marshall ao máximo volume [o Ramones trará uma aparelhagem de três a quatro vezes maior do que a de Siouxsie e seus Banshees]. É muito diferente aquilo que a gente faz em estúdio, do que executando ao vivo. Num estúdio você tem inúmeros recursos, a gente pode errar, experimentar. É um processo, como disse, muito mais criativo, onde posso me preocupar com um arranjo diferente, um teclado em uma ou outra música. Ao vivo é o momento, contar um, dois, três, quatro e atacar.
Kid – Quanto a essa inclusão de teclados em algumas faixas de seus discos, como você explica?
Joey – Apesar de detestar grupos que usam sintentizadores, gosto eventualmente de incluir um teclado ou outro, bem sutilmente em nossos trabalhos, mas sem levar a coisa para o lado “tecno”, apesar de já termos trabalhado com Dave Stewart, do Eurythmics, no LP “Too Tough To Die”.
Kid – E quanto aquele pessoal que trabalhou com vocês no início de carreira, por volta de 76 ou 77 no CBGB, em Nova York, como Blondie e Talking Heads. O que você acha do trabalho deles hoje?
Joey – Gosto demais do trabalho feito por Debbie Harry no Blondie e curto demais seus trabalhos solo, principalmente o mais recente. Quanto ao Talking Heads, igualmente admiro bastante. Aliás, o Jerry Harrison também fez teclados em uma das faixas do LP “Too Tough To Die”.
Kid – E as bandas inglesas. O que você acha desses novos grupos, tipo Smiths, etc?
Joey – Smiths??? Ah! Não sei, não gosto muito dessas coisas novas que têm aparecido, as vezes uma ou outra coisa aproveitável. Bom mesmo foram os grupos de 77, a época mais criativa do movimento punk-rock, desde Pistols, Buzzcocks e Sham 69. Essa sim foi uma grande época para o punk-rock.
Kid – E hoje Joey?
Joey – Tem coisas que eu gosto que não têm a ver com punk, por exemplo, heavy metal do tipo Motorhead, AC/DC, Metallica e até The Cult.
Kid – E quanto a Van Halen e a banda de Dave Lee Roth, quem você considera o melhor guitarrista, Steve Vai ou Eddie Van Halen?
Joey – Sem dúvida que Eddie Van Halen é o melhor guitarrista.
Kid – Agora, partindo para suas influencias nos anos 60, que estão bem na música do Ramones, o que você pode dizer?
Joey – Basicamente é Califórnia 1964, “surfing music”, Beach Boys principalmente. Tem coisas dos anos 50, como Buddy Holly, Eddie Cochran, mais anos 60 como Kinks, e anos 70, T. Rex, MC5 e Stooges.
Kid – O LP “End of The Century” teve a produção de Phil Spector, o tão legendário produtor dos anos 60. Como surgiu a ideia?
Joey – Achamos interessante convidar Phil para a produção desse disco, mas acabou mudando bastante o nosso estilo. Chegamos até a gravar “Baby I Love You”, com arranjo para orquestra e tudo, imagine. Mas na época gostamos bastante do resultado.
Kid – E hoje vocês tocariam “Baby I Love You” ao vivo, ou qualquer outra balada, que vocês sabem fazer tão bem?
Joey – É muito difícil executar “Baby I Love You” ao vivo principalmente porque tem um arranjo sofisticado para piano e orquestra. Foi apenas para o disco e para aquela época, hoje nem pensar. Quanto às baladas prefiro muito mais cantá-las em disco, num trabalho de estúdio. Ao vivo, como falei, é garra. Não há espaço para baladas.
Kid – Vocês pretendem executar músicas do novo trabalho ainda não lançado?
Joey – Não, somente, como disse, faremos uma retrospectiva de todo nosso trabalho até os mais recentes LPs.
Kid – E quanto a esse novo trabalho que vocês estão terminando em estúdio, fale mais sobre ele.
Joey – Esse novo material segue a linha dos dois últimos discos, com vários estilos – às vezes hardcore, às vezes punk, uma ou outra balada – enfim, um trabalho bem variado, pois nos demos muito bem nessa linha de trabalho adotada nos mais recentes LPs, agradando a todos os gostos. [Passada meia hora de conversa desliguei o telefone, pois já tinha falado demais. Mas poderia ficar a tarde toda papeando com Joey, que se mostrou agradabilíssimo. Por fim, insisti na pergunta inicial, pra ver se tinha, pelo menos, ganhado sua confiança depois de toda entrevista. O nome ele não quis revelar, mas acabei descobrindo numa enciclopédia da vida, que é Jeffrey Hyman. A idade, afinal, ele contou: 34 anos. Disse a ele que é ótimo, tenho 31. E respondeu: “É, realmente, pegamos uma grande época no rock que foi os anos sessenta”]
Um comentário:
S E N S A C I O N A L * Vivi tudo isso.
Postar um comentário