Acredito ser a última cena criativa da MPB essa que girou em torno do teatro Lira Paulistana, entre 1979 e 1982. Falo de Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé, Premeditando o Breque, Língua de Trapo, Grupo Rumo e alguns outros.
Depois disso a MPB não trouxe nada de novo. Houve uma tentativa, no início dos anos 2000, de se fazer uma nova cena MPB, mas tudo muito raso e fraco (gosto mesmo de Tulipa Ruiz que, por acaso, é filha do grande Luiz Chagas, ex-guitarrista do Isca de Polícia).
Muitos se referem a essa turma do Lira como a Vanguarda Paulista, e dessa turma há quem não se incomode com isso, e há quem se incomode. Itamar se incomodava, e muito. Fato é que ali foram quebrados paradigmas, surgiu um novo modo de composição, uma nova linguagem. Era algo diferente, urbano, que misturava bossa nova, samba, rock, mpb, tropicalismo, música erudita, um texto diferente e muito humor. É uma Turma que produziu, por baixo, uns 10 discos clássicos, músicas de primeira qualidade... e muita loucura! :)
Em homenagem a essa galera do Lira Paulistana reproduzo aqui esse bom texto de Maurício Kubrusly (ele deu grande apoio a essa cena). No final incorporei alguns videos e também um documentário sobre essa cena, um TCC feito em 2008 por alunos de Rádio e TV da Universidade Metodista de SP (ele tem 30 minutos e vale a pena).
E eu vi shows de Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, Arrigo & Itamar, Premê, Língua de Trapo....
A Nova Cara da Música Popular
Som Três – nº 35 – novembro/1981
Por Maurício Kubrusly
É a virada paulista: de repente, uma série de caras novas, nomes novos e, ao contrário da maioria, fazendo música nova também. Sem festival nenhum.
Deu São Paulo na cabeça outra vez. Não cabe aqui ufanismo bairrista, pois se trata somente de uma consequência coerente: a maior cidade do Brasil é, efetivamente, um caldeirão, lugar onde se misturam os ingredientes de todas as regiões do país, ao lado do mais variado contingente de ‘colônias’ vindas do exterior. E é compreensível que dessa monumental gororoba, engrossada com gente, de vez em quando surja algum petisco substancioso na área da cultura. Foi assim naa explosão do Modernismo, lá pra 1922. Foi assim, na área da música popular, no final dos anos 60, quando pipocou o Tropicalismo. Foi assim nessa mesma época, quando o trem dos festivais trouxe carga nova para a música popular.
E volta a ser assim na virada da década: mais uma vez a música nova do Brasil surge em São Paulo. Muito longe dos festivais em rede nacional, muito distante das salas onde pontificam os diretores de gravadoras, sem contato nem apadrinhamento dos medalhões da MPB, a música popular já tem sangue novo, um grosso caldo paulista.
É mesmo necessário insistir tanto na localização geográfica dessa virada paulista (aliás, título de uma promoção do Lira Paulistana – como veremos mais adiante), porque um dos pontos mais fortes de tudo isso está mesmo no regional. Não se trata, é lógico, de uma descoberta: a verdade sempre estave ao lado do regional, do particular. Quem parte em buscva do universal acaba no reino do postiço. A verdade de cada um tem endereço. Exatamente por isso, a cópia de moldes importados soa sempre falta – em música popular também.
Mas toda essa patota que está sacudindo a música popular é paulista, paulistana da gema. A música que faz tem sotaque. (E isso, é natural, está dificultando a divulgação de todo esse trabalho diante da plateia carioca – tão bairrista quanto a de São Paulo. Basta mencionar as vaias que inibiram Arrigo Barnabé na sua apresentação no Morro da Urca, onde se imaginaria encontrar um público mais... digamos acessível.)
Nos trabalhos de Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, Premeditando o Breque, Língua de Trapo (enfim, o nome dos heróis...) brilha pelo menos um item em comum a todos: a música deles é um eco da cidade onde vivem. Isso explica a identificação imediata entre todos eles e aquelas pequenas multidões de fiéis que os seguem e aplaudem.
Em alguns casos, a presença vai muito além mesmo do denominador regional. Vejam Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, por exemplo. Musicalmente, os discos dos dois caminham em trilhas muito diversas. Mas Arrigo é acompanhado pela Banda Sabor de Veneno; e Itamar, pela Banda Isca de Polícia. Sabor de Veneno... Isca de Polícia... E a presença dos marginais não está só aí: vejam os protagonistas de cada disco – no caso de Arrigo, é Durango, um office boy miserável, que acaba se transformando em Clara Crocodilo, ser mutante, mistura dos dois lados que toda pessoa tem (o doce lado Clara e a feroz face Crocodilo). (Não esquecer o que representa a população de boys em São Paulo, uma cidade ocupada por escritórios como toda megalópolis. Tanto que a Rede Globo decidiu investir nesse público específico, criando a promoção Futeboys).
No caso de Itamar, o protagonista também é um paulistano típico: o Nego Dito Cascavé (olha o veneno aí de novo, no dente de cobra). Se chamar a polícia sua boca espuma de ódio, e ele retalha sua cara com navalha. E este personagem, já confundido com o próprio Itamar – é comum se referir a ele lembrando “ah, aquele Nego Dito” – percorre todo seu disco com minifaixas, interferências inesperadas – exatamente como acontece na guerrilha urbana de uma cidade como São Paulo, precisamente como é a vida dos Nego Dito reais.
CRONISTAS
Nada de muito surpreendente nisso tudo. Afinal, boa música popular sempre foi uma crônica de época, retrato da cidade onde é composta e cantada. O Rio antigo está nos sambas de Noel Rosa, assim como a dor e a beleza do Nordeste nutrem a obra de Luiz Gonzaga. Portanto, São Paulo e sua gente tinham mesmo de rechear a nova música do Brasil, já que ela se tornou paulistana por nascimento. Assim, além do seu esplendoroso Durango-Clara Crocodilo, Arrigo Barnabé canta também os seres que lotam os drive-in em busca do orgasmo total, e leva para a canção popular uma das marcas de qualquer cidade grande: as diversões eletrônicas.
Esta crônica paulistana – com características diversas, mas conservando o olhar bem humorado – aparece igualmente no trabalho do grupo Premeditando o Breque. Com a obra mais regional de todas, o Premê narra o fim de semana na Praia Grande, a Kombi japonesa que só vai pro Ceasa, a invasão da pizzaria-rodízio e das rotisseries, os pilotos amadores das pistas do Interior, a música caipira e o gênero chamado “povão”.
E a mesma crônica delineia a atação dos alucinados do Língua de Trapo. São os marginais da patota. Sequer conseguiram gravar um disco. Tudo o que oferecem é uma fita cassete mambembe, que trocam por 500 cruzeiros, já que não podem vender, pois não tem razão social que permita uma operação comercial regular. Por tudo isso – e, principalmente pela música que apresentam, como apresentam – o Língua de Trapo é um caso deliciosamente singular. Se o Brasil não tinha punk, tem agora nos trapos dessa língua. Nada de alfinetes de fraldas, correntes e outros adereços importa... isso é: copiados. E nada de terninhos e coisitas new wave.
A semelhança é com a ideia do punk: música simples, suja, sem muita preocupação com o acabamento bem polido, mas com crítica violenta, sátira total. Tudo isso brilha no trabalho do Língua de Trapo, uma cronicona escrachada de São Paulo, da invasão dos argentinos e da latinidade, ao deboche esculachado de casos de amor que terminam com afogamentos no bidê. Como estamos no Brasil, eles não retomam o rock e, sim, a brasileiríssima Jovem Guarda. E trazem para o palco (eu disse palco?) o ridículo de Sidney Magal e a ganância dos empresários. Uma pândega sem fim que só deixa uma dúvida: e se eles conseguirem sucesso, mais dinheiro para a produção, um disco? E se eles forem conhecidos? Será que vão conseguir manter a virulência dos ratos roedores, essa força maluca que têm agora?
INDEPENDÊNCIA
Existe mais um lado comum a todos esses grupos: a independência. É claro que todos atuam no terreno esburacado da produção independente. As grandes gravadoras estão muito ocupadas com o mofo do marasmo geral da música de mercado para sequer cheirar os odores frescos dessa virada paulista. Foi assim com Arrigo, com Itamar, com o Premê. E também com o grupo Rumo. Só que o pessoal do Rumo – o trabalho mais delicado e filigranoso da gang nova – foi mais longe: lançou dois LPs ao mesmo tempo, independentes entre si, apesar de todas as pontes que unem os dois. E a cidade grande também está presente no trabalho do Rumo, embora de forma menos direta.
Mas ainda há outras dentro da lista comum dessa arrelia musical que sacode e desvaira a paulicéia. Vários músicos desses grupos conhecem bastante a técnica do próprio trabalho. Nada de dominar apenas três ou quatro posições no violão e, na hora de gravar, depender do trabalho de um arranjador. Nada de truques eletrônicos, sintetizadores e outros carimbos utilizados na uniformização da música em todo o mundo. Os próprios elementos de cada grupo cuidam do arranjo, buscando a originalidade que cada peça exige. E eles sabem fazer isso. Inclusive porque alguns têm formação erudita, tendo frequentado a “faculdade de música” da Universidade de São Paulo – como fizeram Arrigo, Biafra (Premê), alguns do Rumo, etc.
E quando se ouve o Rumo, Arrigo Barnabé ou o Premê, por exemplo, mais uma vez se reconhece a falta que faz conhecer música, quando se trata de trabalhar com.... música. (É claro que se reconhece isso pelo inverso, já que todos os citados conhecem os instrumentos do próprio trabalho.)
INSTRUMENTAL
E fica para outro capítulo a menção ao ressurgimento da música instrumental, dentro do agito geral que injeta vida nova na música brasileira. Há o Grupo Um (já em seu segundo LP independente), o Divina Increnca, o Trio D’Alma, o Grupo Medusa, o Ponte Aérea, Guga, e muito mais. E todos eles se envolveram, há pouco, no projeto Virada Paulista, uma maratona musical que durou muitas semanas, feira de amostras da música nova. É óbvio que aconteceu no “teatro” Lira Paulistana, um simpático galpão de cor negra, que fica literalmente embaixo da Rua Teodoro Sampaio, em São Paulo. Assim como o Zicartola no Rio, há muitos anos, o Lira cumpre agora a função de ser o espaço, o ponto de contato entre todo o time novo e o público que abarrota suas precárias arquibancadas. Tudo sob a batuta do Gordo, o capitão do Lira, que já lançou um selo independente para discos (a estreia foi com Itamar) e até um jornalzinho.
E seria mesmo preciso um noticiário mais amplo sobe este movimento, ou melhor: a respeito dessa movimentação. Pois não se trata de um movimento, como a bossa-nova, o tropicalismo ou a canção de protesto. O tempero de reggae da música de Itamar não tem nada com a arquitetura vocal elaboradíssima do Rumo; o Stravinsky e o Bertok que abençoam a banda nervosa de Arrigo nada têm em comum com as delícias do zigue-zague do LP do Premê. Eles todos tem de igual, é certo, o sotaque paulista. É a fuga da cópia, da repetição, a descoberta de combinações únicas. A verdade do regional, a crônica da cidade onde se refletem o bom humor, a capacidade de fazer um som próprio – como uma assinatura.
Exatamente por isso, precisaríamos abrir mais espaço para eles – como a Somtrês tem feito. Rádio e tevês teriam de parar com a repetição eterna de repetido sempre, e mostrar a todo o Brasil que ele já pode ouvir algo novo. E que não são apenas os que foram mencionados aqui, que há cantoras como Tetê Espíndola e Eliana Estevão, e conjuntos como O Outro Bando da Lua. E certamente muito mais – pois no tempo que separa o momento em que isso foi escrito e agora, quando você lê, certamente o caldeirão de São Paulo transbordou de novo, e a virada paulista deu mais outra guinada.
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