23 de setembro de 2013

Especial Discos Históricos 5: Secos & Molhados (1973)


Pode perceber que todas as pessoas que viveram os anos 70, a maioria tem uma história com o primeiro disco do Secos & Molhados. Eu mesmo ficava horrorizado com a capa. Adorava o disco, escutava as flautas, os violões e me imaginava no mato, num gramadão, numa fazenda kkkk. Escutávamos sempre. Porém não pegava na capa, olhava pra ela com receio, tentando entender porque um disco tão bonito tinha uma capa tão macabra kkkk

Foi um tsunami o que aconteceu com o Secos & Molhados entre 1973 e 1974. Literalmente abalou o Brasil, pelas composições, pelo visual e pelas apresentações. Aquilo sim era diferente. O estranho bonito.


Infelizmente a fama e o ego fizeram acabar rápido o que talvez poderia ter durado ao menos 3 discos. Poucos dias antes do lançamento oficial do 2º disco, praticamente um ano depois do primeiro, em agosto de 1974, Ney Matogrosso e Gerson Conrad anunciaram a saída da banda, cancelando o lançamento, apesar de algumas cópias terem ido para as lojas. Esse segundo trabalho só saiu em CD nos anos 1990, muito pelo trabalho de Charles Gavin. Apesar de tudo, qualquer outro trabalho da banda mesmo feito com os três, não iria superar o que é esse primeiro trabalho. Até hoje não conheci ninguém que não goste desse disco. Pra mim, é o disco mais atemporal da música brasileira.


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Secos e Molhados
Folha SP – 10-ago-1973; Ilustrada, pág 8



Secos e Molhados, o som pop de poemas famosos
Por LCA

Seis meses atrás, os quatro rapazes estreavam na Casa de extinta Casa de Badalação e Tédio, aquele café-concerto na Rua dos Ingleses que conseguiu alegrar algumas noites do verão paulista.

Não pode se dizer que a estréia tenha sido tímida: desde sua primeira apresentação, o Conjunto Secos e Molhados (Ney Matogrosso cantando, João Ricardo no violão de 12 cordas e na harmonica de boca, Gerson Conrad em outro violão, e Marcelo Frias na bateria e percussão) insistiu em fazer de si mesmo uma imagem condizente com a sua condição de músicos pop: maquiagem de cores berrantes e purpurinas brilhantes. Camisetas terminando antes da cintura, coreografia e iluminação reforçando os detalhes da encenação.

Mas o pop desse conjunto é um tanto quanto diferente. As letras das músicas, por exemplo, vêm de poemas assinados por poetas famosos: Cassiano Ricardo (“As Andorinhas”), Vinícius de Moraes (“Rosa de Hiroshima”), Manuel Bandeira (“Rondó do Capitão”). Ou então, foram escritas pelo próprio João Ricardo, a partir de notícias de jornais (“Assim Assado”). Duas delas (“Fala” e “Vira”) têm músicas de João Ricardo e letra de Luli, uma das cantoras da nova dupla Luli e Lucinha.

Agora surge na praça o primeiro LP dos Secos e Molhados. Na capa, os quatro rapazes posam sobre uma mesa cheia de comilanças. Dentro, nos créditos, alguns nomes conhecidos. Entre eles, o de Antônio Carlos Rodrigues (o fotógrafo da capa) e o de Zé Rodrix (do extinto conjunto Sá, Rodrix e Guarabira, que fez o acompanhamento no piano, ocarina e sintetizador).




Fadas e Bruxas
Por Geraldo Mayrink

Revista Veja, 12-dez-1973, páginas 106, 107 e 108
Secos e Molhados, com o grupo Secos & Molhados; Teatro 13 de maio; São Paulo.

Não se via nada parecido desde que John Lennon decretou o fim do sonho. Todas as noites, com uma assiduidade maníaca, pequenas multidões de seiscentas ou mais pessoas espremem-se sob o calor do Teatro 13 de Maio para ouvir os primeiros acordes de verão que começa, cantados e dançados pelos Secos & Molhados, um conjunto que seis meses atrás poderia provocar o mais atualizado espectador a pergunta: “Secos o quê?” Mas o próprio ambiente do teatro sugere que a massa de beautiful people não foi ali em vão. Recém saído do glorioso e coruscante trottoir dos “Dzi Croquettes” o lugar sugere logo alguma coisa de mágico e excitante, com seus trapos pensdurados no palco e sua iluminação – digamos – psicodélica. E o espetáculo curto (uma hora) e denso (de vez em quando algum músico precisa trocar a roupa encharcada de suor), tem um efeito fulminante sobre a platéia.

Para que esse efeito fosse inteiramente alcançado, porém, foi preciso que os sacis e as fadas pontilhassem o ano de 1973 de bons augúrios para os três rapazes do conjunto. Com uma rapidez que atordoou tanto o público quanto os protagonistas, os Secos & Molhados voaram do limbo do anonimato para as nuvens das paradas de sucessos. Cem mil cópias de seu LP de estréia foram vendidas desde setembro.

Duas das músicas do disco - “O Vira” e “Sangue Latino” - ganharam nas rádios a obrigatoriedade de hinos. Populações inteiras, abaixo do Rio Grande, vão ouvir a partir de janeiro a versão castelhana “Sangue Latino”. A maratona que empreenderam em várias cidades do interior paulista rendeu os juros de uma audição em Porto Alegre, na semana passada, num estádio para 15 000 pessoas, o Gigantinho. E – sonhos dos sonhos, para um grupo que vive sonhando acordado! - a varinha de condão vai provocar a aparição de um LP todinho gravado em Londres e um espetáculos nos Estados Unidos em 1974. Lindo demais para ser verdade? “Nós tínhamos certeza absoluta de que isso ia acontecer”, afirmam, em uníssono, as três vozes de ouro do momento do show business brasileiro.

Vira o quê? – Milagres assim insistentes, em todo o caso, só costumam acontecer no país da maravilha do rock – que não é o Brasil. O que levou o Secos & Molhados, portanto, a essa auto-confiança desafiadora? Eles oferecem músicas simples e ritmadas, fáceis senão de cantar pelo menos de acompanhar batendo com os pés. Embora nada no disco ou no show seja extremamente bom, nada também pode ser chamado de ruim. Exibem um encanto próprio de artistas imaturos, capazes de ocasionalmente esquentar esta temperatura morna, como na patética e comovente canção acrescentada ao poema “Rosa de Hiroshima”, de Vinícius de Morais: “Pensem nas crianças mudas telepáticas / Pensem nas meninas cegas inexatas / Pensem nas mulheres rotas alteradas”. Mais ainda do que nesta canção, o apuro técnico do grupo tranparece em “As Andorinhas”, de um poema de Cassiano Ricardo: “Nos fios tensos da pauta de metal / As andorinhas gritam / Por falta de uma clave do sol”.

Certamente não foi só por este cuidado na seleção das fontes literárias que toda noite é de casa cheia para o conjunto. “O Vira”, uma graciosa musiquinha que lembra uma dança típica da região do Minho, em Portugal, tem um gosto de canção infantil e ao mesmo tempo de transmutação dos sexos. Os presságios das frases “O gato preto cruzou a estrada / Passou por debaixo da escada”, que abrem a música, tem como inquietante e surpreendente resultado o “vira, vira, vira homem / Vira lobisomem”, alusão imprópria para menores. Tomando-a ao pé da letra, o “Vira” virou porta estandarte de algumas correntes do Gay Power nacional, assim como o Secos e Molhados começa a ser visto como um conjunto situado na terra de ninguém que vai do infantil ao pretensioso, do teatral ao rebolado, da seriedade à curtição pura. Tudo sob a proteção de um nome que nem sequer alude ao consumo maciço de ingressos e discos que o abençoou: “É um nome que não determina coisa alguma, mas que se abre para todos os gêneros”, explica João Ricardo, seu líder.

Sem medo da língua – Tantas interpretações para um grupo tão jovem trazem uma certa inquietação para os Secos e Molhados – que ream quatro, na época do lançamento do disco, e agora são três (Marcelo, a quarta cabeça decepada na capa do LP, agora limita-se a acompanhar os outros tocando bateria). Embora exista desde 1971, com outros componentes, o atual Secos & Molhados só nasceu no começo de 1973 e seu despreparo é flagrante no detalhe dos saltos que dois dos três dão no palco, causando a impressão de que acabarão caindo em cima do pianista ou talvez da platéia.

Esses dois, o líder João Ricardo, 24 anos, e Gerson Conrad, 21 anos, cantores, violonistas e compositores, são amigos de adolescência e vizinhos de casa, na Bela Vista, em São Paulo. João, filho do jornalista e crítico de teatro Apolinário, chegou ao Brasil com os pais e a irmã em 1964.

Mesmo tocando violão desde os 17 anos, sua formação é antes de tudo literária, e que ele transmite ao repertório do grupo. João descreve o futuro de seu grupo citando Nietzsche (“É preciso tomar cuidado com as pessoas que sonham acordado, porque elas chegam lá”) e com a mesma confiança que tinha na sua aceitação. “É preciso não ter medo da língua portuguesa”, diz ele. “O português não é mais um código secreto”.

Saltos certeiros – Gerson, seu antigo vizinho, e Ney Matogrosso, o cantor do conjunto, tiveram apenas que esperar o convite de João. Enquanto o primeiro seguia seu curso de arquitetura (está no terceiro ano, sem saber como encontrar tempo para continuar) e tomava aulas de violão clássico com um professor espanhol, Ney andava de cidade em cidade e de profissão em profissão antes de se tornar a figura central do conjunto.

Nascido há 32 anos em Bela Vista, no Mato Grosso, terceiro filho de uma família de cinco irmãos e pai militar, Ney de Souza Pereira trabalhou cinco anos num hospital em Brasília, cantou em corais, fez teatro infantil e vivia de artesanato de couro e barbante até o aparecimento do conjunto. Sobre sua figura esguia e provocante pesam as acusações de ser mulher (para quem o conhece só de discos) e usar pseudônimo. “Ambas falsas”, acrescenta ele. Embora não o tenha no registro, Matogrosso é o nome de seu avô, refugiado naquele Estado por motivos políticos durante o governo de Washington Luís, deu a todos os filhos. E sua “voz de mulher” é na verdade um raro registro de contratenor, sem nenhum falsete. No palco, porém, a atuação de Ney não permite dúvidas ou mal-entendidos: ele é o artista do grupo que salta sem dar a impressão que vai esbarrar no colega.

A fada má – Assim, a pessoa de Ney, que recentemente encerrou um período de sua vida pedindo demissão do funcionalismo público de Brasília (para desgosto dos colegas, que o alertaram para as incertezas da velhice), ameaça ser cada vez mais confundida com os Secos & Molhados como grupo. Paradoxalmente, este ex-artesão que não conseguia vender seus artigos (“Umas coisas meio marroquinas, quem é que ia usar aquilo além de mim?”) também não pensava em ser cantor, apesar de sua participação em corais. “Eu pretendo ser mais do que isso”, explica ele, “sou uma ideia viva” (João Ricardo, por sua vez, antes mesmo de conhecer Ney, queria um cantor que fosse também um outdoor). Dos três, a sua maquilagem é a mais elaborada e a mais agressiva. Sua arrogância no palco é provocativa e proposital: “É preciso que o público saiba de uma vez do que se trata”. Como o público sempre sabe, ou pensa saber, ele foi contemplado ao longo da peregrinação pelo interior paulista com os adjetivos de praxe. “Eu sempre respondo”, diz ele, divertido. “Mas qual é a dessa gente de insultar quem está no palco?”.

Por causa de sua atuação em cena, Ney ao vivo é uma surpresa que se renova dia a dia. A maquilagem muda “conforme o estado de espírito” e uma longa sessão de contorcionismo no palco pode significar tanto uma forma nova de expressão corporal como um artifício para fugir ao calor e descansar deitado: “Eu quero jogar tudo o que sou em cima do público”. Mas o que “é” Ney matogrosso? Uma espectadora, após um, espetáculo, pensou ter achado a resposta e lhe disse: “Não tenha medo. Você não é nada daquilo que está no palco”. E ouviu: “Mas, senhorita, é claro que eu sou aquilo!”.

Mesmo as fadas e os sacis não poderiam, realmente, acabar com essas coisas. Nem impedir que uma certa desordem e ansiedade surgisse entre o trio. Ney quer “ser o que é”. João Ricardo pretende estudar música numa universidade americana. Gerson deseja, no mínimo, ser também arquiteto. No entanto, a fada má – ou a bruxa – do comércio os espreita a cada espetáculo e a cada disco vendido. “Eu não vou ser um superstar”, ameaça João Ricardo: “Não vou ser e tenho raiva de quem é”. Ney, o mais ameaçado pelo estrelismo, sabe o risco que corre: “Olha, eu gosto mesmo é de bater perna na rua, o dia inteiro, entrar em loja e comprar bugigangas”. E João decidido: “Quero fazer o que gosto, sem conceder nada. O dia que precisar conceder, acabo com o sonho dos Secos & Molhados.”


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