A Gang 90 & Absurdettes foi algo realmente diferente. Ninguém entendeu nada quando ela apareceu no Festival da Globo. Ninguém entendeu nada quando ela colocou uma música na abertura da novela das oito, na Globo. Ninguém entendia nada quando ela aparecia.
Apesar de ter um formato parecido com a Blitz, com garotas fazendo vocais, o rock da Gang 90 era mais, digamos, cabeça. Não era para um público pré-adolescente ou adolescente, como era o caso da Blitz. Júlio Barroso fazia referências literárias em suas letras (era um poeta romântico...). Algumas delas muito mais poesia do que letra. Herman Torres fez um grande trabalho com as palavras de Júlio.
Essa Tal de Gang 90 & Absurdettes é um grande disco, mas que jamais iria fazer o sucesso que outras bandas fizeram, como Kid Abelha, Paralamas e Blitz. Não era um trabalho pop, mas sim algo conceitual. Apesar de ter curtido sua carreira com disco por pouco mais de um ano, Júlio Barroso, que morreu em junho de 1984, deixou marcas profundas no rock brasileiro, além de ter sido referência pra muita gente que, assim como ele, começava uma carreira.
Depois desse lançamento a Gang 90 ainda lançou outros dois grandes discos, que conseguiram dar continuidade às ideias de Júlio. Discos conceituais com forte poesia e arranjos de respeito, assim como é em Essa Tal...
Aqui transcrevi dois textos: um da revista Veja, que descreve bem a Gang e Júlio, num texto claro e objetivo. O outro transcrevi da Folha de São Paulo. Quando li, fiquei em dúvida em publicar o texto de Pepe Escobar, mas aí resolvi transcrevê-lo para mostrar o oposto do texto da Veja (confesso que não gostei e achei de difícil compreensão). Como sempre faço, transcrevi o texto original, mantendo inclusive os erros.
Folha de São Paulo – 02 de março de 1983 (4ª feira) – Ilustrada, página 33
Movimentos Falsos
Por Pepe Escobar
Duchamp – jogando xadrez com Rrose Sélavy –, Man Ray, Hans Ritchter e epígonos já declararam: há sonhos que o dinheiro não pode comprar. A começar pelos estéticos. O que está acontecendo agora? Cérebros mobiliados a prestação tentam articular seus lances de dados. Imaginários eventualmente sedutores: um ou outro brilho literário, uma ou outra dissipação consciente, um ou outro fulgor conceitual. Mas é muito pouco. Por que toda essa inquietação e tensão não consegue se transmutar em formas orgânicas de vida, esteticamente organizadas, sabotando muitos cristalizados com seu caos, vertigem e paixão?
Porque é tudo muito fácil, tá tudo muito bom, tá tudo muito bem. E não é a facilidade de Paul Eluard, de amor à poesia, vida criativa. O disco “dessa tal de Gang 90 e absurdettes” – não há a mais remota semelhança com as dissonâncias crispadas e enfurecidas do Gang of Four – é apenas mais um frustrante exemplo.
A gang é criação de Júlio Barroso, bom disk-jockey, qualificado para o papel de vodu humano. “Românticos a Gô Gô” denota as influências culturais “corretas”, assim como tudo que tem ouvido e assimilado: Kid Creole, Siouxsie, Blondie, James White, Raybeats, Bush Tetras, Talking Heads, Material, Gang of Four. No entando, a síndrome continua: o que pode um pobre garoto fazer, a não ser cantar em uma banda de rock? Mudou-se pouco. Só que agora os sonhos cheiram a naftalina.
Fascinado pelos neons e a carne fácil, o provável poeta exercita-se descompromissadamente” “Pode ser de São Paulo a Nova York / ou tão lindo flutuando em nosso Rio / ou tão longe mambeando o mar Caribe / Nossa onda de amor não há quem corte” (em “Telefone”); “Spray teu nome num muro / voado pela feliz cidade / relembro cabarés invisíveis / canções sussurros só risos / Vivo em plena velocidade / à luz de uma estrela vadia / corista cantora maldita / Voz Billie blue Holiday” (em “Mayacongo”). Ele sente um sonho estranho nas paredes do prédio, e prefere morrer de vodka do que de tédio (em “Convite ao Prazer”). Está construída a base filosófica do novo hedonismo, que junto ao cinismo – com puros e apropriados toques românticos – constitui a única possibilidade atual de sobrevivência. Agora só falta passar esta percepção para a garotada.
Pânico previsível. Ou a elaboração de um produto em vinil como ejaculação precoce. Alívio nada absurdette. Mesmo porque essas garotas não são as B-52s ou as Go-Gos. Falsos movimentos, humor ausente. Posadoras. Energia que volta para o buraco negro, assim como a música. As guitarras estão de cama, com pneumonia. A bateria não chega a ter o ataque de uma marcação de ritmo com caneta Bic. Arranjos privilegiam a previsibilidade por artes da incompetência alcançando a perfeição ao destruírem uma versão reggae da deliciosa “Perdidos na Selva”, ou a transposição de “I Know but I Dont Know” (Blondie). Morte em vida para uma gang desarticulada, contemplando apenas um miragem, muito longe de voar “spaced out in paradise” (de Clive Stevens; versão de Júlio barroso).
História de um erro, anulado em suas possibilidades estéticas pelas performances descarnadas dos personagens. A pretensão do “flash” cega um fluxo potencialmente renovador. A garotada talvez não se importe muito com isso. Pode ficar recitando “eu sei, mas eu não sei”. Com apenas um agravante: sem saber por que, como e com que fins.
Revista Veja – 24/agosto/1983 – Edição 781 – Música – página 121
A Gang Ataca
Louco Amor faz a fama de um novo grupo
Nos idos da Jovem Guarda, Júlio e Denise Barroso, dois irmãos cariocas da Lapa, sonhavam em formar o que chamavam de “um conjuntinho”. Hoje, quinze anos depois, o conjuntinho existe – e pode ser ouvido religiosamente, nas noites de segunda a sábado, em todo o território nacional. Louco Amor, de Júlio Barroso e Herman Torres, conseguiu ocupar o posto mais cobiçado do marketing da música popular brasileira – virou tema da novela das oito na Rede Globo. E hoje possibilita a seus intérpretes, a Gang 90 & Absurdettes, sonhar cada vez mais alto e mais longe. O compacto Louco Amor se aproxima do Disco de Ouro (cem mil cópias). E o LP de estréia do grupo, Essa Tal de Gang 90, já saiu do ostracismo underground para conquistar audiências mais amplas.
A aventura começou, na prática, em fins de 1980. Júlio Barroso, o mentor e principal letrista da Gang, voltou neste ano de Nova York deslumbrado com o nascente movimento new wave, florescente em casas noturnas como o Mud Club e o C.B.G.B. “Eu estava, como estou até hoje, com os pés no Brasil e a cabeça no mundo”, afirma Júlio. “Tinha certeza de que era possível unir o novo tipo de rock que estava nascendo com a música feita no Brasil.” Júlio tinha também outra certeza: a de que música não precisa ser feita necessariamente por músicos, mas, antes, por gente que goste muito de música. Baseado nessa tese, defendida entre outros pelos compositores de vanguarda John Cage e Brian Eno (líder do grupo pop Roxy Music), Júlio foi à luta e descobriu seu time numa antiga casa de rock de São Paulo, a Paulicéia Desvairada.
O nome do grupo é uma variação sobre uma velha gíria, “pedra 90”, que designa coisas boas e agradáveis. O previsto, inicialmente, era uma única apresentação no Paulicéia, com Perdidos na Selva, cujo arranjo ficou a cargo do amigo Guilherme Arantes. A reação foi boa, e o vírus do palco se apoderou da Gang. Continuaram compondo e ensaiando, e em fins de 1981 estrelaram durante quinze dias um show no Lira Paulistana – espécie de Meca por onde passam todos os grupos independentes de São Paulo. A apresentação incluía um vídeo-show em dez monitores espalhados pelo teatro. Em seguida, foi a vez do Rio – dois fins de semana no Morro da Urca, que acabaram atraindo a atenção de “olheiros” da RCA. Veio o contrato, o primeiro LP (Essa Tal de Gang 90 & Absurdettes) e a novela.
Hoje, além de Louco Amor, outras músicas do LP começam a tocar insistentemente nas rádios – como Telefone, que resume a linha descaradamente romântica do grupo:
São três horas da manhã, você me liga
Pra falar coisas que só a gente entende
E com seu papo poesia me transcende
Oh meu amor
Isso é amor
Pra falar coisas que só a gente entende
E com seu papo poesia me transcende
Oh meu amor
Isso é amor
Ou, então, como Noite e Dia, que já fez carreira na voz de Marina:
No escuro do quarto, bela na noite
Nas ondas do luar
Seus olhos negros, pantera nua
quer me hipnotizar
Nas ondas do luar
Seus olhos negros, pantera nua
quer me hipnotizar
Você está me convidando
Menina quer brincar de amar
Menina quer brincar de amar
Muita gente já pertenceu à Gang: Willian Forghieri e Antônio Pedro (da Blitz), Wander Tasso, Willie e Lee Marcucci (Rádio Taxi), Tavinho Fialho (o baixista de Arrigo Barnabé), o baterista Gigante Brasil, a vocalista Alice Pink Punk. Hoje, o time fixo das Absurdettes inclui May East (Maria Elisa Capparelli Pinheiro, paulistana, 27 anos, a “primeira vídeo-jóquei do Brasil”), Lonita Renaux (Denise Maria Barroso Chaves de Souza, carioca, 27 anos) e Taciana Barros (18 anos, santista, pianista clássica). Herman Torres, alagoano de 29 anos, é o encarregado de dar o embasamento musical do grupo. Com um LP solo já gravado pela Polygram, Torres tem músicas suas gravadas por Fagner, Amelinha, Ney Matogrosso, Vital Farias, Rosa Maria e Zizi Possi (um de seus maiores sucessos Caminhos de Sol).
O cérebro da Gang, porém, continua sendo Júlio Barroso, 29 anos, jornalista free-lancer, poeta, cantor, discotecário e radialista. Ele encara o sucesso de hoje como parte de um movimento mais amplo – o New Brega – por ele lançado e cujo objetivo é reciclar a “cafonália romântica descarada” que preenche a programação das rádios AM misturada com os elementos eletrônicos da música pop mais contemporânea. Sem abandonar a Gang, Barroso está montando um outro grupo, o Brazil, para espalhar o new brega pelo país afora. “Quero ver minhas músicas embalando prostitutas de beira de estrada no interior do Maranhão”, diz ele.
4 comentários:
Fala Marchetti,
Outro post muito bom. No entanto, nunca entendi direito o acidente do Júlio. Ele tinha a cama perto da janela e caiu de um andar alto? Foi isso mesmo?
Abs
Oi Palhares. Todo mundo falou em suicidio porque venda mais revista e jornal. Ainda mais sendo 1984. Era isso mesmo... ele tinha uma cama / sofa que ficava na altura da janela, que esdtava aberta e ele doidao...entao...
Foi um baque muito grande pra todo mundo. Uma perda enorme.
Valeu!
abç
P Marchetti
Valeu amigo por compartilhar conhecimento! Nao conhecia a banda e ouvi "Telefone" hoje. Brilhante banda. Abcs
Postar um comentário