1 de abril de 2011

Série O Resgate da Memória: 19 - O Lançamento de Tropicália ou Panis et Circensis

Nesta reportagem histórica que descreve a noite de lançamento de um dos discos mais importantes da música brasileira, o que mais chama a atenção é a riqueza de detalhes. Uma verdadeira viagem no tempo.

Folha de São Paulo
14 – agosto – 1968 (quarta-feira)
Acervo Digital Folha


Uma Noite Tropicalista
Adones de Oliveira




Às 11 da noite de anteontem o Avenida Danças já estava repleto. Tudo funcionava regularmente. Como nos dias normais as mulheres chegavam, sentavam-se nas cadeiras que rodeiam o enorme salão e ficavam esperando que os cavalheiros as viessem tirar para dançar. Cada um tinha recebido seu cartão numerado na entrada, que seria picotado e devolvido na saída, para o devido acerto de contas. Às 11 da noite de anteontem no Avenida Danças, Ipiranga, 1120, já era grande o número de pessoas que chegavam para assistir ao lançamento de “Tropicália” e viver o maior acontecimento tropicalista já havido, desde que o tropicalismo foi inventado.

Primeiro chegaram Gilberto Gil, Gal Costa, Os Mutantes, Nara Leão, Tom Zé e o empresário Guilherme Araújo, produtor da festa, Caetano chegou mais tarde e quando entrou foi recebido com palmas e gritos. O salão tinha sido dividido. Num lado continuava-se dançando, os “habitues” nem davam bola para o que acontecia na outra metade, cheia de mesas, que não chegavam para o número de pessoas presentes. Gil, numa mesa grande, com Nara Leão e as bailarinas da Rhodia, apertava uma buzina e gritava “Tereziiiiinha”.

Chegaram os componentes do “New Vaudeville Band”, sete ingleses vestido com moda de 1920. Os “Beat Boys” barbudos e de boina, à “Che” Guevara, também transitavam no meio da multidão de manecas, bailarinas, artistas, jornalistas, desconhecidos, fotógrafos, etc. Caetano usava um casaco comprado em Londres e um boa cor-de-rosa, espécie de estola, enrolada no pescoço. Ele e Gil ficavam andando de um lado para outro, cumprimentando uns e outros.

À uma hora os apresentadores oficiais do Avenida Danças, impecavelmente vestidos, anunciaram o show. Ninguém conseguia ouvir direito o que diziam, o barulho era enorme, todo mundo gritava “Terezinha”. Um grupo ficou chamando o poeta Décio Pignatari, afastado um pouco da turba. Um fotógrafo quis brigar com um rapaz, que o impedia de trabalhar direito. Guardas, com a indelicadeza costumeira, exigiam a saída dos que se sentavam na passarela, à falta de lugares melhores. O pano se abriu, começaram a gritar “senta, senta!”, Gilberto Gil iniciou o espetáculo com “Miserere Nobis”. Houve um pouco de silencio quando Caetano cantou “Coração Materno”. Nas outras o público acompanhava e batia palmas. No palco estavam Nara, Gil, Caetano, Gal Costa, Os Mutantes, Tom Zé. Saíram, uma a uma, todas as músicas do disco. “Miserere Nobis”, “Coração Materno”, “Parque Industrial”, “Panis ET Circenses”, “Hino do Senhor do Bomfim da Bahia”, “Baby”, “Lindonéia”, “Três Caravelas”, “Batmacumba”, etc.

Na vez do hino o ator Antonio Pitanga ficou dando vivo ao Nosso Senhor do Bomfim, como nas procissões. O auge do entusiasmo deu-se em “Batmacumba”, cantado por todos. A orquestra, muito boa por sinal, era da casa e Rogério Duprat a regeu. Terminado o show apareceu Jorge Bem, que também subiu ao palco. Todo mundo cantava e dançava.

Lenie Dale subiu na passarela e ficou se exibindo. Nas mesas as moças da Rhodia dançavam e davam gritos. Outros artistas também aplaudiam: Claudete Soares, Da Kalafe, Walmor Chagas, Rejane Medeiros e outros. Gil e Caetano desceram do palco, ficaram abraçando as pessoas. Algumas pessoas saíram, mas a confusão continuou. A orquestra voltou a tocar os boleros, recomeçaram a dança. Os homens que saiam tinham que devolver os cartões, picotados ou não. O Avenida Danças viveu uma noite “social” das mais movimentadas, mas o faturamento não foi grande. Muitos fregueses deixaram de dançar para ver de perto uma noite tropicalista.

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