25 de abril de 2017

Ideologia - Cazuza



O Contexto

Abril foi o mês de lançamento de 'Ideologia', 3º disco solo de Cazuza e o mais significativo de sua discografia.

Portais brasileiros de notícias, blogs e outros sites preferiram lembrar de lançamentos gringos como o 1º do Ramones, ‘Check Your Head’ do Beastie Boys, e até mesmo o 1º do Damned (discos que tenho e amo!). Eu entendo isso uma vez que brasileiro não sabe dar valor a sua história. Mais que isso: praticamente ninguém sabe sobre os lançamentos brasileiros, e não se importa muito com a nossa história, mesmo que seja cultura pop.

É preciso falar do contexto na época desse lançamento: o Brasil, claro, em crise terrível, o Cruzado indo cada vez mais para um buraco sem fundo enquanto o Governo Sarney, já de saída, cagava e andava cada vez mais para a população do país (quem se lembra do voo da alegria para Paris, quando Sarney foi pra lá e levou 80% de Brasília com ele para a festança?). Aquela festa do consumismo gerada pelo fracassado Plano Cruzado já havia acabado e ninguém sabia o que iria acontecer, nem mesmo os políticos e ministros.

A cena musical da época estava também ficando insegura quanto ao futuro, e a crise financeira já batia na porta das gravadoras. Quem resistia eram artistas já consagrados como Paralamas, Titãs, Barão Vermelho, Legião, Engenheiros, Ira! e Cazuza, entre outros poucos.

Desde quando saiu do Barão, a carreira de Cazuza foi bastante intensa, principalmente porque os boatos de que estava com HIV cresciam a cada aparição dele em TV, fotos, etc.

É preciso também entender que o vírus HIV e a aids era algo absolutamente novo, no qual nem os cientistas conheciam direito, por isso, todos começavam a ficar preocupados, apesar de nesse começo ser tida como uma doença exclusiva de homossexuais – o que não era, mas ninguém sabia. Todos os dias em jornais impressos ou na TV, nas revistas, rádios e na conversa do dia a dia, surgiam fatos novos relacionados ao HIV, possíveis remédios, tratamentos, havia cura ou não, prevenção e tals. Dentro desse contexto estava Cazuza que a cada imagem, mudava o aspecto físico: cada vez mais magro e cabelos cada vez mais lisos.

Por isso tudo ele se tornou alvo preferido da mídia – lembrando que nessa época (graças a Deus) ainda não havia no Brasil o mercado da fofoca, paparazzi e revistas como a Caras. Tínhamos coisas como Contigo e Fatos e Fotos, mas que se restringiam a escrever sobre a programação das TVs, as novelas, programas e os ídolos, mas nunca ultrapassando o lado profissional. Por isso Cazuza foi um dos primeiros artistas a ter sua vida pessoal vasculhada e observada.

Entre o ‘Só Se For a Dois’, lançado em março de 1987, e o ‘Ideologia’, lançado em abril de 1988, muita coisa aconteceu na vida de Cazuza, que se tornava cada vez mais intensa. Suas viagens aos Estados Unidos para tratamento eram sempre cercadas de mistérios e para a imprensa era prato cheio. Isso foi, claro, dando mais importância para a carreira artística dele, até porque ele não media palavras, era inteligente, escrevia letras maravilhosas, era muito querido no meio artístico e sempre teve uma postura corajosa e não tinha medo de se posicionar para nada.

Até o lançamento de ‘Ideologia’, não havia em suas letras nenhuma referência ao seu estado de saúde (ele foi descobrir ser portador do HIV pouco depois de lançar o "Só..."). Ele escrevia basicamente sobre amor e suas porra louquices. A certa altura todo mundo queria saber o que Cazuza tinha pra falar. Inclusive pelo boato do HIV que crescia. E tudo o que líamos a respeito da doença, batia com algumas coisas vistas em Cazuza (por exemplo, a perda de peso e o cabelo liso por conta do uso do AZT). Isso gerava uma curiosidade tremenda.

Quando o ‘Ideologia’ foi lançado. Pow! Batata! Ali estavam declarações cristalinas de que ele estava sim com uma doença terminal, mas mesmo assim demorou um tempo até assumir estar contaminado pelo HIV. “Ideologia”, “Boas Novas”, “Vida Fácil”, “Blues da Piedade” e outras, todas elas tinham algo a ver ou com a sua doença ou com o que ele estava vivendo em relação aos boatos na imprensa. E foi um ano antes, logo depois do lançamento de ‘Só Se For a Dois’, que Cazuza descobriu ser portador do HIV.

‘Ideologia’ é um discaço! Monumental. Produção impecável. Composições de primeira! Letras maravilhosas! E a doença trouxe algo novo para seu texto, mais raiva, mais coragem. Ele mesmo disse que Renato Russo despertou inveja nele (no bom sentido), e que o fez buscar outras inspirações para as letras, daí surgiu temas políticos e de comportamento. Colocou mais agressividade em sua porra louquice amorosa.

O Disco

Sabemos que na maioria dos casos em que a pessoa corre o risco de morrer, que chega perto da morte de fato, ela muda. Assim foi com Cazuza dois anos depois de descobrir estar com HIV. Foram diversas viagens para os EUA durante seu tratamento, mas parece que a ocorrida no segundo semestre de 1987, para Boston, foi mais séria. Cazuza continuou, da forma que podia, sendo o porra louca que era, e continuou bebendo e fumando. E se tornou super produtivo, pois sabia que não teria muito tempo.

Voltou da viagem com ideias novas. Mudou até a forma de escrever, além de ampliar os temas, passou a usar a 3ª pessoa do singular. Teve aulas de canto, mudou seu tom, chamou músicos de primeira qualidade, deixou os teclados de lado, assinou a produção junto com Ezequiel Neves e Nilo Romero (seu baixista, parceiro e diretor musical) e mostrou um amadurecimento incrível.

‘Ideologia’ é, disparado, seu melhor disco. Assim como ele chocou a mídia com as letras do 1º Barão Vermelho, assim o fez novamente em ‘Ideologia’.

Repertório de primeira. Os parceiros nas composições são: Frejat, Ritchie, George Israel, Nilo Romero, Gilberto Gil, Dé, Zé Luis e Renato Ladeira. Cazuza assina sozinho três músicas. No estúdio teve a ilustre participação de Raphael Rabello com seu belo violão de 7 cordas na maravilhosa “O Assassinato da Flor”, de Lobão tocando bateria em “Obrigado (Por Ter Se Mandado)” e de Sandra de Sá fazendo backing vocal em “Blues da Piedade” e “Guerra Civil”.

‘Ideologia’ tem um pouco de tudo: rock, mpb, funk e até bossa nova. Mas tudo faz sentido, tem direção musical. Tem músicas de amor, seu lado boêmio exagerado e a novidade que era "Brasil", música de protesto. Inclusive foi tema de abertura da novela ‘Vale Tudo’, uma das mais emblemáticas dos anos 1980. Em show no Canecão, durante a turnê desse disco, Cazuza cuspiu na bandeira brasileira, gerando um certo buchicho, revolta de uns, e graça para outros.

O roqueiro romântico mudou sem deixar o romantismo, lançou um disco maduro e mostrou pra quem, àquela altura, ainda duvidava de sua capacidade como artista. E fez com maestria a mudança que queria, ampliando seus horizontes de influências e ideias. Engraçado que, em paralelo, o Barão Vermelho com ‘Carnaval’, lançado no mesmo ano, também chegou ao seu amadurecimento pós Cazuza, e “Pense Dance” também fez parte da trilha sonora de ‘Vale Tudo’ (sendo a música da personagem protagonista Maria de Fátima).

A turnê do disco, a que Cazuza usa o famoso figurino branco com lenço na cabeça, gerou o ótimo ao vivo 'O Tempo Não Para', lançado em janeiro de 1989 (ano em que corajosamente assumiu ter aids).

'Ideologia' era pra ter sido lançado no final de 1987, mas os dois meses em Boston fizeram os planos mudarem. Quis o destino assim, ainda bem, pois o que aconteceu com Cazuza foi determinante para a criação de ‘Ideologia’. Como ele mesmo afirmou “é o disco da sobrevivência”.

Lado A
Ideologia
Boas Novas
O Assassinato da Flor
A Orelha de Eurídice
Guerra Civil
Brasil

Lado B
Um Trem Pras Estrelas
Vida Fácil
Blues da Piedade
Obrigado (Por Ter Se Mandado)
Minha Flor, Meu Bebê
Faz Parte do Meu Show

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