4 de setembro de 2014

O Valor da Morte

Verdade seja dita, doa a quem doer. Que sirva a carapuça em quem se sentir atingido, mas a verdade é que alguns artistas brasileiros só receberam a devida atenção após sua morte. Pra mim, fica claro que a maior parte da culpa disso é da imprensa.

Raul Seixas, por exemplo, estava completamente esquecido quando Marcelo Nova o resgatou para uma série de 50 shows e um disco de inéditas. Mesmo com esse resgate, a mídia ignorou sua volta e essa série de shows, que foram um sucesso de público. Ninguém da imprensa falou disso, divulgou, ajudou ou comentou. 

Marcelo Nova e Raul chegaram a ir ao Faustão, é verdade, mas mais por causa do estado físico de Raul do que pelo sucesso da empreitada da dupla. Raul já não estava nada bem de saúde quando Nova o procurou. Até imagino na reunião de pauta do programa alguém dizendo: "Vamos trazer os caras porque Raul está nas últimas, vamos aproveitar!".

Na época em que o disco Panela do Diabo estava sendo gravado, por coincidência, eu estava fazendo um trabalho no estúdio Vice Versa, onde ele foi gravado. O engenheiro de som do disco tinha que ligar todos os dias pra saber se Raul estava bem, se não havia morrido e se ia conseguir ir ao estúdio colocar as vozes. Raul chegava ao Vice Versa de cadeira de rodas.

(PS: No estúdio B do V-V tinha a famosa mesa de som que gravou o disco nunca lançado do Vímana e que, se não me engano, gravou o Panela do Diabo)

A gravadora correu pra lançar o disco com ele ainda em vida. Dois dias depois do lançamento Raul se foi. Aí começaram as homenagens, a imprensa o enaltecia, o colocava em um pedestal. A verdade é que o público em geral e a imprensa estavam cagando para o Raul, mas aí ele morre e volta a se tornar o grande Raul Seixas.
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Ok, por muito tempo era impossível contar com ele para alguma coisa, por conta de seu envolvimento com a bebida e seu estado de saúde, que foi piorando cada vez mais na segunda metade dos 80, mas tratá-lo como super ultra Raul só porque morreu é muito cinismo, não? Homenagens poderiam  ter sido feitas antes.

Menos de um ano depois da morte de Raul Seixas, foi a vez de Cazuza falecer. E o que a imprensa fez com Cazuza foi pior.

Barão Vermelho estava em alta quando lançou o Maior Abandonado, em setembro de 1984. Depois de três discos finalmente o Barão tinha caído nas graças do grande público, muito por conta do sucesso do filme e música "Bete Balanço" e também de “Por que a Gente é Assim?”, músicas que tocavam nas rádios sem parar.

No final de julho de 1985 Cazuza anunciou sua saída do Barão e assim, tanto ele, quanto o Barão, tiveram que praticamente começar do zero. Como seria o Barão sem Cazuza? Como seria Cazuza sem Barão? Os dois penaram para reconquistar o público. Barão só conseguiu se reerguer com o disco Carnaval, em 1988.

Cazuza também só foi voltar a ter sucesso em 1988 com o lançamento de Ideologia. Exagerado e Só Se For a Dois passaram batidos apesar de os dois terem alguns grandes hits. Mas, por exemplo, me lembro muito bem que “Codinome Beija-Flor” só foi fazer sucesso quando Cazuza lançou o ao vivo O Tempo Não Pára (ortografia da época), apesar dela ter sido gravada em 1985, no Exagerado.

Cazuza só foi ter atenção da mídia, incluindo a Globo, quando sua saúde começou a se debilitar por causa do HIV. Toda vez que ele ia para Boston, a imprensa adorava. Ele só teve atenção da mídia quando começaram os boatos da doença. A Globo só fez o especial com seu show no Canecão por saber que sua morte era iminente (assim como Raul no Faustão). Mesmo que de forma velada, os veículos todos se deliciaram em mostrá-lo cada vez mais debilitado. Um show de horror.

O que dizer da capa da Veja de 26 de abril de 1989?

Cazuza voltou a fazer sucesso, mas para muitos a música estava em segundo plano. Depois que morreu recebeu diversas homenagens, mas verdade é que o grande público pouco conhece sua obra inteira. Pouco conhece Exagerado, Só Se For a Dois (pra mim, o clássico de sua discografia) e Burguesia. Morreu e todos começaram a falar dele, a colocá-lo em um pedestal. Você, hoje, escuta Cazuza?

Em fevereiro de 1997 foi a vez de perdemos Chico Science, a principal referência do “movimento” mangue beat. Quantas pessoas falavam de Chico antes da morte dele? Quantas pessoas iam aos shows? Suas músicas tocavam pouco fora das rádios segmentadas e da MTV. Aliás, na MTV ele sempre foi tratado da forma como deveria, assim como em outras rádios dedicadas ao rock e revistas. Seus dois discos lançados não foram nenhum fenômeno de vendas. Ele não era unanimidade na mídia, não era ultra procurado. 

Inclusive já escrevi no blog a respeito do show de lançamento do Afrociberdelia em SP onde só tinha a imprensa assistindo. Foi igualmente triste ver o interesse mórbido da mídia após sua morte, o quanto quiseram enaltecer sua obra sem ao menos conhecê-lo direito. As músicas de CSNZ não estavam na TV aberta, não eram ultra executadas nas rádios... só após sua morte. 

Em fevereiro de 1997 aconteceu o acidente de carro, e todo mundo falava: “Chico Science genial!”, “Um dos grandes nomes da geração 90”, etc. Aí depois virou deus do mangue beat pela grande mídia e por todo público. Parecia que a grande imprensa estava com um sentimento de culpa, por não ter dado mais atenção a Chico.

Hoje é nítido o desprezo, principalmente, da imprensa aos artistas brasileiros. São pouquíssimos os nomes lembrados em datas especiais. Se até mesmo Cazuza é ignorado, imagine então Júlio Barroso. Ele foi responsável pela direção que o rock brasileiro tomou nos aos 80. Influenciou de forma direta ou indireta, todo mundo que estava começando junto, e hoje nada se fala dele: nem na data de seu nascimento, e nem na data de sua morte.

A imprensa trata tudo com frieza e fala do que vai dar ibope, views, curtidas, vendas, e ignora, de forma vil, o que não interessa. Isso só ajuda a fortalecer o velho ditado que diz que brasileiro não tem memória. Dessa forma realmente jamais terá.








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