15 de janeiro de 2014

Série O Resgate da Memória: 34 - Eduardo Dusek & João Penca (Pipoca Moderna - 1982)



O Hilário Encontro de Eduardo Dusek com João Penca & Miquinhos Amestrados

O que um rapaz DISTINTO como este está fazendo com um bando de DELINQUENTES JUVENIS?

Por Ana Maria Bahiana

O olhar é um pouco vago, um pouco triste até, fugindo da luz com a fobia dos claros, lacrimejante, um pouco perdido. Do outro lado do pequeno quarto improvisado em estúdio, o fotógrafo espera, o dedo no gatilho. “Agora Eduardo”. O olhar se acende, se entorta, melífluo, diabólico, iluminando todo o longo rosto como uma auto ironia cruel. O fotógrafo dispara, sorridente – é uma grande foto. Eduardo Dusek relaxa, o olhar vago outra vez. Beberica uma cerveja: ai, como cansa esse carisma!

A guerrilha no festival foi ensaiada exaustivamente por três meses e degustada com medo e prazer na hora H. “Pensavam que eu ia entrar no esquema deles de novo, aqui, ó.”


Eduardo Dusek é um camaleão. Toda sua breve biografia de 28 anos foi consumida na refinada arte de auto-mutação, com seus dois pólos essenciais: construção, destruição. “Sol em capricórnio, ascendente aquário, lua em escorpião”, ele diagnostica versado nas ciências do invisível que é. “Quer dizer, o auge da loucura e o auge da caretice. Agora eu posso? Nem eu seguro uma barra dessas.”

Sua profissão – artista – pressupõe a busca do sucesso como meta. No entanto, aos 15 anos empregados maciçamente nesta complicada carreira, apenas os três últimos podem ser considerados de algum tipo de fama e remuneração. Dusek sabe disso, às vezes liga, às vezes não liga. O sucesso, para ele, é uma discussão interior, uma luta íntima. Quando sacudiu o sonolento festival MPB 80 de fraque, calção, longos cabelos e a saga de fim do mundo com a canção “Nostradamus”, ele teve um breve e assustador flerte com a idéia do sucesso absoluto: “Pra mim foi uma crise fudida. Eu entrei por entrar, para dar um realce, para sacudir um pouco meu trabalho e também por que era o espaço que tinha. Mas, de repente, eu percebi o que estava rolando em volta de mim. Como estava se armando um esquema para me aprisionar numa imagem, o maluquinho bonzinho, de carinha angelical, meio doidão, mas direitinho, o filho de todo mundo, o bom rapaz maluquete, foi foda. A bajulação, a falsidade, eu quase caí nesse esquema aí. É tão fácil cair, se achar poderoso quando na verdade, minha amiga, todos nós sobre essa terra estamos no mesmo barco”.

Dusek toma mais um gole da cerveja, encarapitado desconfortavelmente, com suas longas pernas, no banquinho do estúdio. “Aí, minha filha, me deu uma agonia. Saquei que minha cara estava velha, meu cabelo estava velho, minha música estava velha. Cortei o cabelo e a barba e resolvi cair de boca no rock, que foi uma coisa que eu sempre curti, mas que tinha deixado um pouco de lado. Cansei. Eu sempre quis chegar na frente dos outros e é por isso que eu fazia marchinha, frevo, samba canção, numa época em que ninguém ligava pra isso. Agora, quantas marchinhas o Moraes Moreira já fez? E frevo? Samba canção, nem se fale. Aí fui pro rock que é geral mesmo e está sempre na frente”.

No processo de se roquirizar Dusek comprou roupas novas, um estoque de óculos rayban num camelô da Praça Quinze e um Bel Air 58, imponente, hidramático, bebedor de gasolina e confortável que viu parado, como uma premonição, numa esquina de Ipanema. Mais importante de tudo: colidiu, numa bela noite de verão, com o improvável João Penca & Miquinhos Amestrados, no lato do morro da Urca e decidiu, num transe acoólico, que ali estava a sonoridade que queria para seu próximo disco, seus próximos shows, sua próxima vida.

O disco já existe e se chama Cantando no Banheiro – muito rock tipo anos 50, um deliberado minimalismo pop inspirado em grande parte pelos Miquinhos; e algumas das obsessões de Dusek, ainda, por climas carnavalescos d’antanho, como o frevo “Quero te beber no gargalo” (pra convencer os Miquinhos a cantarem isso eu tive que vir com aquele papo que rock é um estado de espírito, etc etc” (Dusek confessa às gargalhadas).

Os shows estão vindo, mas a mais notável aparição deste novo time foi mesmo numa das eliminatórias do tri-bodeante MPB 82. Inscritos oficialmente para defender uma velha canção de Dusek, “Valdirene, a Paranormal”, a macacada entrou em cena, no teatro Fênix, cheia de convicção e cantando “Barrados no Baile”, do novo repertório. Foi um deliberado golpe de guerrilha, ensaiado ao longo de três meses e que lhes valeu a gloriosa desclassificação, após minutos de corre corre e caos global. Dusek se lembra com gozo da tremedeira de pânico que lhe deu nos joelhos na hora H, do terrora da equipe de produção, das semanas de ensaio falso de “Valdirene” para burlar os globais. “Tavam pensando que eu ia cair no esquema deles de novo. Aqui, ó”.

Eduardo Gabor Dusek – o nome da família de sua mãe não consta do registro, mas ele adora, “somos parentes da Zsa Zsa Gabor” – é o terceiro de quatro irmãos de uma híbrida família classe média do Rio. A acreditar na sua versão da árvore genealógica, a família da mãe é nobre, húngara e decadente, “fudidos pelo comunismo mas sem perder a pose”, emigrada para o Rio nos anos 40; a do pai é tcheca, plebéia e rural, “era tudo lavrador lá, minha avó era linda, chegou aqui, abriu logo cabaré no Lido, mas não aguentou a barra e morreu logo depois”. O pai, artista plástico frustrado, trabalhava na embaixada americana. Os irmãos, com uma única exceção, “caretas e repressores”. Eduardo cresceu solitário, inseguro, afiando suas duas mais fortes defesas – o talento artístico, que percebeu assim que foi sentado a um piano, com 6 anos, e em breve dominava o instrumento e compunha, e o humor, que o fazia assinar suas composições como se fossem de autoria de algum enlouquecido Mozart redivivo.

Com 13 anos, o duplo escudo estava completo – o talento o defendia, com o humor, atacava. A família se mudou para Brasília, no rumo da embaixada, e Eduardo ficou, sob os protestos unânimes de pai e mãe – estava no ginásio, fazendo um curso técnico de desenho e tocando piano em grupos escolares; trabalhava num escritório como um misto de boy e aprendiz de projetista; e morava num local onde voltaria muitas vezes – o complexo de apartamentos em que se dividia uma velha prioridade da família, no Alto da Tijuca.

Dois anos depois, o exibicionismo espontâneo em que sua segurança se camuflara tinha vicejado numa notável flamboyance. Através de amigos comuns, soube que um descabelado grupo de teatro experimentalista precisava de músico. O grupo era liberado pelo professor de teatro Luis Antonio de Cássio, o Cássio Ferrer, e por seu amigo Luiz Fernando Guimarães, futuro Asdrúbal Trouxe o Trombone – a peça proibidíssima, caótica, e erótica chamava-se Lá Vem Nossa Comida Pulando, “um ensaio meio doido em antropofagia tropical”, Dusek recorda – e estava sendo encenada, of all places, no clube Higino, de Teresópolis.

Dusek se vestiu uma estola de peles, “bem popstar”, armou-se com o dinheiro da passagem e uma bolsa de comida, “porque sabia que dinheiro não iria ter” e subiu a serra. Era o início de uma longa e forte amizade.

Em pouco tempo Eduardo estava morando com Cássio, Luiz Fernando e mais “um batalhão de gente” num apartamento de cobertura de Botafogo, transformado num misto de comunidade, estúdio de ensaios e mini-teatro para o recém-formado grupo de teatro Resolução, “porque todo tinha tomado a resolução de sair de casa”. De dia, trabalhava no escritório de arquitetura. De noite estudava teatro, música e dança sob a eclética direção de Cássio – Nijinsky – Dalva de Oliveira e Carmem Miranda eram tópicos de igual importância nos laboratórios. Estudava na Escola Nacional de Música, também – ao longo de cinco anos acumulou os diplomas de teoria, composição, arranjo e regência. As sextas o apartamento se transformava: era noite de espetáculo com Luiz Fernando de protagonista, Dusek de diretor musical/músico/ator, Cássio de diretor. Uma vez Gilberto Gil foi ver: “foi aquele rebuliço. Achei que era o tal do sucesso”.

Qual o quê. Em 75 um convite inesperado: participar da série Mostragem, do teatro Opinião, apresentado por Gil em pessoa. Cabelos curtíssimos, rosto pálido, sobrancelhas raspadas, Dusek, dirigido por Cássio, tentava emular Nijinsky, mas acabava parecido com David Bowie – o humor era fino e louco, os tempos estavam mudos, foi um fracasso.

Por dois anos Dusek ainda seria cúmplice de Cássio em concêntricos vôo experimentais – enquanto ganhava mais alguma grana tocando piano na montagem de Desgraças de Uma Criança, de Antonio Pedro. Até que, em 76, alguma coisa clicou em sua cabeça: fazia um show chamado Arame Farpado que era exatamente isso, arame pelo chão e luzes apagadas para provocar a platéia. “Achei que era o fim. Não queria coisas pesadas mais. Tirei escondido minhas coisas do apartamento de Botafogo, comprei uma passagem de trem e fugi para São Paulo”.

Em São Paulo, depois de sobreviver dando aulas de canto alguns anos, recomeçou a montar shows: leves, divertidos, ferinos shows cheios de bom humor que, hoje, é sua assinatura. A crítica adorou, Dusek adorou. Voltou ao Rio, em 78, de novo para o Alto da Tijuca até que uma “louca paixão tipo um amor e uma cabana” o arrastou para o Recreio dos Bandeirantes. Fez sucesso no verão de 79 com o show Folia no Matagal. Conheceu um parceiro novo, Luis Carlos Góes, com o mesmo tipo de humor cortante que o seu. Em 80, estava no festival. Em 81, em crise. Em janeirode 82 viu João Penca e Seus Miquinhos Amestrados no Morro da Urca, “o resto”, ele suspira, “é história”.

João Penca e Seus Miquinhos Amestrados é uma rara história de amadorismo que deu certo. Sua biografia é extremamente improvável: começa nos idos de 72/73, quando todo prédio do Rio de Janeiro tinha um conjuntinho, e o edifício Jacumã, na fronteira do Alto com o Baixo Leblon, não era exceção. Lá liderados pelos irmãos Marcelo e Cláudio Knudsen – respectivamente Bob Carlo e Nebuloso Cláudio, The Killer – e pelo improvisado guitarrista Leandro Verdeal, um bando de pré-adolescentes vidrados em Beatles, Stones, Elvis, Gene Vincent, Buddy Holly e Chuck Berry ensaiava tardes a fio sem nenhuma outra perspectiva que ensaiar tardes a fio. Guilherme Ricardo, o Hullygully, Maurício Rosa Fernandes, o Del Rosa, Sérgio Abreu, o Selvagem Big Abreu e Luis Carlos Avelar, o Avelar Love, eram uns dos mais constantes ensaiadores dessa agremiação que chegou a se chamar Zôo e Anos 60 até que, numa célebre gravação caseira repleta de sacanagens, alguém que ninguém lembra mais quem foi que proferiu a frase histórica: “João Penca e Seus Miquinhos Amestrados!”.

O nome ficou, o grupo sumiu: o vestibular e uma doentia tendência para tocar jazz e progressivo assassinaram as brilhantes perspectivas da banda. “A gente era ruim demais para tocar jazz, só podia ser viadagem do Leandro, mesmo, que tava querendo curtir uma de músico”, confessa Abreu.

São quatro anos de dormência dos Miquinhos, enquanto Leandro “tentava ser popstar” e os outros abriam caminho faculdade adentro. Até que, em 79, Leandro conhece um personagem fundamental: Léo Jaime, goiano criado entre São Paulo e Brasília, ex-músico de baile de carimbós sertão adentro, ex-bailarino e ator da montagem brasiliense de Os Saltimbancos, então tentando a sorte no Rio e estudando dança com Klaus Vianna.

Léo é uma espécie de Dusek mais moço, mais baixo e mais moreno – tem o mesmo humor determinado, a mesma casca dura de quem está há muito tempo na estrada (Dusek sabe disso: Assim como eu peguei coisas do Gil e do Caetano e fui em frente, o Léo vai prosseguir, daqui em diante”). Ele percebe no grupo de que Leandro fala sem muito entusiasmo um potencial insuspeitado. Começa a compor especialmente para os Miquinhos, que por enquanto voltam timidamente à cena em festivais de colégio, retomando às origens rock’n’roll. São rocks sacanas, em parceria com Leandro, com Arnaldo Baptista – de quem foi muito próximo no tempo em que o Mutante Mor morou no Rio – Com o amigo Tavinho Paes, investindo furiosamente contra assagradas instituições da classe média que tinham sido – e ainda são – o habitat natural do Miquinhos: casamento, prosperidade, segurança, castidade pré-marital, masturbação reprimida, poluições noturnas, heterossexualidade, monogamia.

Em 81, finalmente, Léo não resiste e se torna um Miquinho himself, arrastando Leandro de volta. Juntos, Léo, Leandro e Abreu elaboraram a nova etapa da banda, a gomalina, as calças arregaçadas, o estudado ar de perigosos delinqüentes juvenis. Era janeiro de 82, acabam de tocar no morro da Urca quando um Dusek trêbado e tresloucado invade o camarim e lhes promete fama, fortuna e um show em comum. Dias depois Léo liga, mas Dusek, sóbrio, não se lembra de nada. Léo insiste, puto da vida, e a luz se faz.

O encontro de Dusek com os Miquinhos é uma encruzilhada na vida de ambos. Para Dusek, é o confronto com o futuro, com a geração seguinte, a necessidade de dirigir e não ser dirigido, o exercício da tolerância, da negociação – foram atribuladas as gravações de Cantando no Banheiro, a Polygram pressionando por uma limpeza técnica que os Miquinhos não podiam ter, Dusek negociando a integridade do projeto e sua própria sobrevivência enquanto disco. Para os Miquinhos, é o desafio de um profissionalismo que nunca sonharam ter: fora Léo e Leandro, todos tem suas carreiras, como Abreu, que é estagiário de arquitetura, e Cláudio, tenente da Aeronáutica (“ele vai para os ensaios de farda e tudo!”) e médico. “Agora é que a gente vai ter que enfrentar isso”, Léo diz com calma.

Há mais coisa sem comum entre eles além do rock’n’roll e das biografias assemelhadas de Dusek e Léo – há, principalmente, uma espécie de crueldade, uma visão do mundo aguda e implacável disfarçada sob a cumplicidade do humor. Para os Miquinhos, é ainda crueldade dos adolescentes, de baderna. Para Dusek, que já foi abandonado, humilhado – “nessa profissão da gente você escuta cada coisa inacreditável” – que já passou três anos na geladeira da gravadora RCA – contratado, impedido de buscar outra saída profissional, mas sem nunca entrar em estúdio – essa agudeza cruel é uma espécie de tai-chi existencial, uma luta branda contra o mundo.

“Eu não perdôo mesmo”, ele me diz altas horas da noite concluindo entre goles d’água a entrevista que começamos uma semana antes regada a cerveja. “Esse mundo que está aí é mau, é ridículo, o homem parece que só sabe viver na intolerância, na ignorância, só sabe matar, ferir, humilhar, perseguir. É tudo materialismo, ganância, maldade”.

A fase do amor e da cabana terminou – “no fim tinha só uma cabana e um puta aluguel pra pagar”: Dusek voltou para Tijuca, morando com a avó, enquanto seu “bangalô”, nos fundos do terreno, não fica pronto. Evita beber perto de shows – “perco a voz num instante”, trata-se por homeopatia e estuda, como sempre, ciências ocultas, esoterismo e astrologia. Ama a idéia do amor – só a visão concreta do amor pode romper uma brecha em sua bem construída armadura de sarcasmo: “Se eu vejo um casal bonito se beijando na rua, realmente apaixonado, sincero, eu me comovo de verdade. Fico com os olhos cheios d’água. Disfarço, mas fico. Para o amor tem sempre perdão. Tudo é permitido”.

Certa vez, pouco mais de um ano, viu um disco voador. Sempre quis ver e nunca conseguiu, mas nessa noite, dirigindo sozinho de volta ao Recreio dos Bandeirantes, não estava preparado. Ele ainda treme um pouco quando conta sua visão: uma bola dourada de luz do lado esquerdo da estrada, ele acelerando, a bola sumindo para reaparecer novamente no final da estrada, na linha do horizonte, e aí se dividir, fulgurantemente, em duas. Afreiada súbita, o coração disparado, a luz sumindo pra reaparecer exatamente em cima de seu carro, “uns dois mil metros de altura”!, enorme e bel, com um longo apêndice vermelho descendo céu abaixo.


“A coisa toda durou uns vinte minutos”, Dusek diz pensativo e sério, olhando o fundo do copo d’água. “Acho que nunca mais fui o mesmo depois disso”.

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