O Hilário Encontro de Eduardo Dusek
com João Penca & Miquinhos Amestrados
O que um
rapaz DISTINTO como este está fazendo com um bando de DELINQUENTES JUVENIS?
Por Ana Maria
Bahiana
O olhar é um pouco vago, um pouco triste
até, fugindo da luz com a fobia dos claros, lacrimejante, um pouco perdido. Do
outro lado do pequeno quarto improvisado em estúdio, o fotógrafo espera, o dedo
no gatilho. “Agora Eduardo”. O olhar se acende, se entorta, melífluo,
diabólico, iluminando todo o longo rosto como uma auto ironia cruel. O
fotógrafo dispara, sorridente – é uma grande foto. Eduardo Dusek relaxa, o
olhar vago outra vez. Beberica uma cerveja: ai, como cansa esse carisma!
A guerrilha no festival foi ensaiada
exaustivamente por três meses e degustada com medo e prazer na hora H.
“Pensavam que eu ia entrar no esquema deles de novo, aqui, ó.”
Eduardo Dusek
é um camaleão. Toda sua breve biografia de 28 anos foi consumida na refinada
arte de auto-mutação, com seus dois pólos essenciais: construção, destruição.
“Sol em capricórnio, ascendente aquário, lua em escorpião”, ele diagnostica
versado nas ciências do invisível que é. “Quer dizer, o auge da loucura e o
auge da caretice. Agora eu posso? Nem eu seguro uma barra dessas.”
Sua profissão
– artista – pressupõe a busca do sucesso como meta. No entanto, aos 15 anos
empregados maciçamente nesta complicada carreira, apenas os três últimos podem
ser considerados de algum tipo de fama e remuneração. Dusek sabe disso, às
vezes liga, às vezes não liga. O sucesso, para ele, é uma discussão interior,
uma luta íntima. Quando sacudiu o sonolento festival MPB 80 de fraque, calção,
longos cabelos e a saga de fim do mundo com a canção “Nostradamus”, ele teve um
breve e assustador flerte com a idéia do sucesso absoluto: “Pra mim foi uma
crise fudida. Eu entrei por entrar, para dar um realce, para sacudir um pouco
meu trabalho e também por que era o espaço que tinha. Mas, de repente, eu
percebi o que estava rolando em volta de mim. Como estava se armando um esquema
para me aprisionar numa imagem, o maluquinho bonzinho, de carinha angelical,
meio doidão, mas direitinho, o filho de todo mundo, o bom rapaz maluquete, foi
foda. A bajulação, a falsidade, eu quase caí nesse esquema aí. É tão fácil
cair, se achar poderoso quando na verdade, minha amiga, todos nós sobre essa
terra estamos no mesmo barco”.
Dusek toma
mais um gole da cerveja, encarapitado desconfortavelmente, com suas longas
pernas, no banquinho do estúdio. “Aí, minha filha, me deu uma agonia. Saquei
que minha cara estava velha, meu cabelo estava velho, minha música estava
velha. Cortei o cabelo e a barba e resolvi cair de boca no rock, que foi uma
coisa que eu sempre curti, mas que tinha deixado um pouco de lado. Cansei. Eu
sempre quis chegar na frente dos outros e é por isso que eu fazia marchinha,
frevo, samba canção, numa época em que ninguém ligava pra isso. Agora, quantas
marchinhas o Moraes Moreira já fez? E frevo? Samba canção, nem se fale. Aí fui
pro rock que é geral mesmo e está sempre na frente”.
No processo
de se roquirizar Dusek comprou roupas novas, um estoque de óculos rayban num
camelô da Praça Quinze e um Bel Air 58, imponente, hidramático, bebedor de
gasolina e confortável que viu parado, como uma premonição, numa esquina de
Ipanema. Mais importante de tudo: colidiu, numa bela noite de verão, com o
improvável João Penca & Miquinhos Amestrados, no lato do morro da Urca e
decidiu, num transe acoólico, que ali estava a sonoridade que queria para seu
próximo disco, seus próximos shows, sua próxima vida.
O disco já
existe e se chama Cantando no Banheiro
– muito rock tipo anos 50, um deliberado minimalismo pop inspirado em grande
parte pelos Miquinhos; e algumas das obsessões de Dusek, ainda, por climas
carnavalescos d’antanho, como o frevo “Quero te beber no gargalo” (pra
convencer os Miquinhos a cantarem isso eu tive que vir com aquele papo que rock
é um estado de espírito, etc etc” (Dusek confessa às gargalhadas).
Os shows
estão vindo, mas a mais notável aparição deste novo time foi mesmo numa das
eliminatórias do tri-bodeante MPB 82. Inscritos oficialmente para defender uma
velha canção de Dusek, “Valdirene, a Paranormal”, a macacada entrou em cena, no
teatro Fênix, cheia de convicção e cantando “Barrados no Baile”, do novo
repertório. Foi um deliberado golpe de guerrilha, ensaiado ao longo de três
meses e que lhes valeu a gloriosa desclassificação, após minutos de corre corre
e caos global. Dusek se lembra com gozo da tremedeira de pânico que lhe deu nos
joelhos na hora H, do terrora da equipe de produção, das semanas de ensaio
falso de “Valdirene” para burlar os globais. “Tavam pensando que eu ia cair no
esquema deles de novo. Aqui, ó”.
Eduardo Gabor
Dusek – o nome da família de sua mãe não consta do registro, mas ele adora,
“somos parentes da Zsa Zsa Gabor” – é o terceiro de quatro irmãos de uma
híbrida família classe média do Rio. A acreditar na sua versão da árvore
genealógica, a família da mãe é nobre, húngara e decadente, “fudidos pelo
comunismo mas sem perder a pose”, emigrada para o Rio nos anos 40; a do pai é
tcheca, plebéia e rural, “era tudo lavrador lá, minha avó era linda, chegou
aqui, abriu logo cabaré no Lido, mas não aguentou a barra e morreu logo
depois”. O pai, artista plástico frustrado, trabalhava na embaixada americana. Os
irmãos, com uma única exceção, “caretas e repressores”. Eduardo cresceu
solitário, inseguro, afiando suas duas mais fortes defesas – o talento
artístico, que percebeu assim que foi sentado a um piano, com 6 anos, e em
breve dominava o instrumento e compunha, e o humor, que o fazia assinar suas
composições como se fossem de autoria de algum enlouquecido Mozart redivivo.
Com 13 anos,
o duplo escudo estava completo – o talento o defendia, com o humor, atacava. A
família se mudou para Brasília, no rumo da embaixada, e Eduardo ficou, sob os
protestos unânimes de pai e mãe – estava no ginásio, fazendo um curso técnico
de desenho e tocando piano em grupos escolares; trabalhava num escritório como
um misto de boy e aprendiz de projetista; e morava num local onde voltaria
muitas vezes – o complexo de apartamentos em que se dividia uma velha
prioridade da família, no Alto da Tijuca.
Dois anos
depois, o exibicionismo espontâneo em que sua segurança se camuflara tinha
vicejado numa notável flamboyance. Através de amigos comuns, soube que um
descabelado grupo de teatro experimentalista precisava de músico. O grupo era
liberado pelo professor de teatro Luis Antonio de Cássio, o Cássio Ferrer, e
por seu amigo Luiz Fernando Guimarães, futuro Asdrúbal Trouxe o Trombone – a
peça proibidíssima, caótica, e erótica chamava-se Lá Vem Nossa Comida Pulando, “um ensaio meio doido em antropofagia
tropical”, Dusek recorda – e estava sendo encenada, of all places, no clube Higino, de Teresópolis.
Dusek se
vestiu uma estola de peles, “bem popstar”, armou-se com o dinheiro da passagem
e uma bolsa de comida, “porque sabia que dinheiro não iria ter” e subiu a
serra. Era o início de uma longa e forte amizade.
Em pouco
tempo Eduardo estava morando com Cássio, Luiz Fernando e mais “um batalhão de
gente” num apartamento de cobertura de Botafogo, transformado num misto de
comunidade, estúdio de ensaios e mini-teatro para o recém-formado grupo de
teatro Resolução, “porque todo tinha tomado a resolução de sair de casa”. De
dia, trabalhava no escritório de arquitetura. De noite estudava teatro, música
e dança sob a eclética direção de Cássio – Nijinsky – Dalva de Oliveira e
Carmem Miranda eram tópicos de igual importância nos laboratórios. Estudava na
Escola Nacional de Música, também – ao longo de cinco anos acumulou os diplomas
de teoria, composição, arranjo e regência. As sextas o apartamento se
transformava: era noite de espetáculo com Luiz Fernando de protagonista, Dusek
de diretor musical/músico/ator, Cássio de diretor. Uma vez Gilberto Gil foi
ver: “foi aquele rebuliço. Achei que era o tal do sucesso”.
Qual o quê.
Em 75 um convite inesperado: participar da série Mostragem, do teatro Opinião,
apresentado por Gil em pessoa. Cabelos curtíssimos, rosto pálido, sobrancelhas
raspadas, Dusek, dirigido por Cássio, tentava emular Nijinsky, mas acabava
parecido com David Bowie – o humor era fino e louco, os tempos estavam mudos,
foi um fracasso.
Por dois anos
Dusek ainda seria cúmplice de Cássio em concêntricos vôo experimentais –
enquanto ganhava mais alguma grana tocando piano na montagem de Desgraças de Uma Criança, de Antonio
Pedro. Até que, em 76, alguma coisa clicou em sua cabeça: fazia um show chamado
Arame Farpado que era exatamente
isso, arame pelo chão e luzes apagadas para provocar a platéia. “Achei que era
o fim. Não queria coisas pesadas mais. Tirei escondido minhas coisas do
apartamento de Botafogo, comprei uma passagem de trem e fugi para São Paulo”.
Em São Paulo,
depois de sobreviver dando aulas de canto alguns anos, recomeçou a montar shows:
leves, divertidos, ferinos shows cheios de bom humor que, hoje, é sua
assinatura. A crítica adorou, Dusek adorou. Voltou ao Rio, em 78, de novo para
o Alto da Tijuca até que uma “louca paixão tipo um amor e uma cabana” o
arrastou para o Recreio dos Bandeirantes. Fez sucesso no verão de 79 com o show
Folia no Matagal. Conheceu um
parceiro novo, Luis Carlos Góes, com o mesmo tipo de humor cortante que o seu.
Em 80, estava no festival. Em 81, em crise. Em janeirode 82 viu João Penca e
Seus Miquinhos Amestrados no Morro da Urca, “o resto”, ele suspira, “é
história”.
João Penca e
Seus Miquinhos Amestrados é uma rara história de amadorismo que deu certo. Sua
biografia é extremamente improvável: começa nos idos de 72/73, quando todo
prédio do Rio de Janeiro tinha um conjuntinho, e o edifício Jacumã, na
fronteira do Alto com o Baixo Leblon, não era exceção. Lá liderados pelos
irmãos Marcelo e Cláudio Knudsen – respectivamente Bob Carlo e Nebuloso
Cláudio, The Killer – e pelo improvisado guitarrista Leandro Verdeal, um bando
de pré-adolescentes vidrados em Beatles, Stones, Elvis, Gene Vincent, Buddy
Holly e Chuck Berry ensaiava tardes a fio sem nenhuma outra perspectiva que
ensaiar tardes a fio. Guilherme Ricardo, o Hullygully, Maurício Rosa Fernandes,
o Del Rosa, Sérgio Abreu, o Selvagem Big Abreu e Luis Carlos Avelar, o Avelar
Love, eram uns dos mais constantes ensaiadores dessa agremiação que chegou a se
chamar Zôo e Anos 60 até que, numa célebre gravação caseira repleta de
sacanagens, alguém que ninguém lembra mais quem foi que proferiu a frase
histórica: “João Penca e Seus Miquinhos Amestrados!”.
O nome ficou,
o grupo sumiu: o vestibular e uma doentia tendência para tocar jazz e
progressivo assassinaram as brilhantes perspectivas da banda. “A gente era ruim
demais para tocar jazz, só podia ser viadagem do Leandro, mesmo, que tava
querendo curtir uma de músico”, confessa Abreu.
São quatro
anos de dormência dos Miquinhos, enquanto Leandro “tentava ser popstar” e os
outros abriam caminho faculdade adentro. Até que, em 79, Leandro conhece um
personagem fundamental: Léo Jaime, goiano criado entre São Paulo e Brasília,
ex-músico de baile de carimbós sertão adentro, ex-bailarino e ator da montagem
brasiliense de Os Saltimbancos, então
tentando a sorte no Rio e estudando dança com Klaus Vianna.
Léo é uma
espécie de Dusek mais moço, mais baixo e mais moreno – tem o mesmo humor
determinado, a mesma casca dura de quem está há muito tempo na estrada (Dusek
sabe disso: Assim como eu peguei coisas do Gil e do Caetano e fui em frente, o
Léo vai prosseguir, daqui em diante”). Ele percebe no grupo de que Leandro fala
sem muito entusiasmo um potencial insuspeitado. Começa a compor especialmente
para os Miquinhos, que por enquanto voltam timidamente à cena em festivais de
colégio, retomando às origens rock’n’roll. São rocks sacanas, em parceria com
Leandro, com Arnaldo Baptista – de quem foi muito próximo no tempo em que o
Mutante Mor morou no Rio – Com o amigo Tavinho Paes, investindo furiosamente
contra assagradas instituições da classe média que tinham sido – e ainda são –
o habitat natural do Miquinhos: casamento, prosperidade, segurança, castidade
pré-marital, masturbação reprimida, poluições noturnas, heterossexualidade,
monogamia.
Em 81,
finalmente, Léo não resiste e se torna um Miquinho himself, arrastando Leandro de volta. Juntos, Léo, Leandro e Abreu
elaboraram a nova etapa da banda, a gomalina, as calças arregaçadas, o estudado
ar de perigosos delinqüentes juvenis. Era janeiro de 82, acabam de tocar no
morro da Urca quando um Dusek trêbado e tresloucado invade o camarim e lhes
promete fama, fortuna e um show em comum. Dias depois Léo liga, mas Dusek,
sóbrio, não se lembra de nada. Léo insiste, puto da vida, e a luz se faz.
O encontro de
Dusek com os Miquinhos é uma encruzilhada na vida de ambos. Para Dusek, é o
confronto com o futuro, com a geração seguinte, a necessidade de dirigir e não
ser dirigido, o exercício da tolerância, da negociação – foram atribuladas as
gravações de Cantando no Banheiro, a Polygram pressionando por uma limpeza
técnica que os Miquinhos não podiam ter, Dusek negociando a integridade do
projeto e sua própria sobrevivência enquanto disco. Para os Miquinhos, é o
desafio de um profissionalismo que nunca sonharam ter: fora Léo e Leandro,
todos tem suas carreiras, como Abreu, que é estagiário de arquitetura, e
Cláudio, tenente da Aeronáutica (“ele vai para os ensaios de farda e tudo!”) e
médico. “Agora é que a gente vai ter que enfrentar isso”, Léo diz com calma.
Há mais coisa
sem comum entre eles além do rock’n’roll e das biografias assemelhadas de
Dusek e Léo – há, principalmente, uma espécie de crueldade, uma visão do mundo
aguda e implacável disfarçada sob a cumplicidade do humor. Para os Miquinhos, é
ainda crueldade dos adolescentes, de baderna. Para Dusek, que já foi
abandonado, humilhado – “nessa profissão da gente você escuta cada coisa
inacreditável” – que já passou três anos na geladeira da gravadora RCA –
contratado, impedido de buscar outra saída profissional, mas sem nunca entrar
em estúdio – essa agudeza cruel é uma espécie de tai-chi existencial, uma luta
branda contra o mundo.
“Eu não perdôo
mesmo”, ele me diz altas horas da noite concluindo entre goles d’água a
entrevista que começamos uma semana antes regada a cerveja. “Esse mundo que
está aí é mau, é ridículo, o homem parece que só sabe viver na intolerância, na
ignorância, só sabe matar, ferir, humilhar, perseguir. É tudo materialismo,
ganância, maldade”.
A fase do
amor e da cabana terminou – “no fim tinha só uma cabana e um puta aluguel pra pagar”:
Dusek voltou para Tijuca, morando com a avó, enquanto seu “bangalô”, nos fundos
do terreno, não fica pronto. Evita beber perto de shows – “perco a voz num
instante”, trata-se por homeopatia e estuda, como sempre, ciências ocultas,
esoterismo e astrologia. Ama a idéia do amor – só a visão concreta do amor pode
romper uma brecha em sua bem construída armadura de sarcasmo: “Se eu vejo um
casal bonito se beijando na rua, realmente apaixonado, sincero, eu me comovo de
verdade. Fico com os olhos cheios d’água. Disfarço, mas fico. Para o amor tem
sempre perdão. Tudo é permitido”.
Certa vez,
pouco mais de um ano, viu um disco voador. Sempre quis ver e nunca conseguiu,
mas nessa noite, dirigindo sozinho de volta ao Recreio dos Bandeirantes, não
estava preparado. Ele ainda treme um pouco quando conta sua visão: uma bola
dourada de luz do lado esquerdo da estrada, ele acelerando, a bola sumindo para
reaparecer novamente no final da estrada, na linha do horizonte, e aí se
dividir, fulgurantemente, em duas. Afreiada súbita, o coração disparado, a luz
sumindo pra reaparecer exatamente em cima de seu carro, “uns dois mil metros de
altura”!, enorme e bel, com um longo apêndice vermelho descendo céu abaixo.
“A coisa toda
durou uns vinte minutos”, Dusek diz pensativo e sério, olhando o fundo do copo
d’água. “Acho que nunca mais fui o mesmo depois disso”.
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