24 de fevereiro de 2020

Série O Resgate da Memória: 52 - Lobão e Os Ronaldos (Revista Roll)

Aqui vai uma entrevista feita com Lobão e Os Ronaldos bem antes da banda gravar seu 1º e único disco. Ela está no nº 1 da revista Roll, lançada em outubro de 1983.

Muitos dos grupos que existiam já nessa época, digo entre 1981 e 1983, quando lançaram seus primeiros discos em 1984-85, boa parte do público já conhecia o repertório e já tinha certas músicas como clássicas. A vida cultural no eixo Rio-São Paulo era intensa com casas noturnas, rádios especializadas, revistas, fanzines e até mesmo os jornais volta e meia já faziam matérias sobre a nova cena musical, comportamento jovem, danceterias, etc.

Então, mesmo não tendo disco, muitos grupos eram recepcionados pelo público já com respeito.

Já escrevi diversas vezes aqui que uma cena musical não se faz sozinha, ela é resultado de uma força conjunta que surge e ganha força de forma natural (músicos, mídia, casas noturnas, fotógrafos e produtores...).

Isso foi o que aconteceu com as gerações rock pré napster, e essa primeira metade dos anos 1980 foi ultra mega intensa, para os artistas e para o público. Pra todo mundo! Era novidade atrás de novidade sem tempo para respirar.

Músicos aprendendo a lidar com a mídia, a mídia aprendendo a lidar com os músicos, e a mesma coisa acontecia com os produtores, executivos, donos de casas noturnas, empresários... todo mundo aprendendo com todo mundo.

Essas matérias que posto aqui na série O Resgate da Memória mostram esses dois lados aprendendo a lidar um com o outro, e é legal ver como jornalistas escreviam na época, as gírias, a construção do texto...





Lobão e Os Ronaldos
Por Maria Silvia Camargo

O rock brasileiro é deboche

Lobão tocando violão clássico e apaixonado por música russa? Os Ronaldos de calças curtas batucando nas pratarias da mamãe? Lobão apaixonado por Mane Garrincha? Com idade média de 23 anos, estes filhos do AI-5 falam tudo. Passaram a infância / adolescência vendo Nacional Kid, Johnny Quest e ouvindo rock. Transavam Led Zeppelin, Genesis e Yes quando todos curtiam, mas, no carnaval queriam mesmo é a avenida. Pegaram a Bossa Nova de rabeira, lembram da Jovem Guarda, curtiram a Tropicália, mas nada de MPB. De formação clássica, Os Ronaldos enfrentavam as aulas particulares e conservatórios pagos por seus papais, enquanto nos colégios formavam suas primeiras bandas. Tocaram em festivais, amavam os Stones. Viveram drogas e repressão. Foram para os Estados Unidos. Desde os 12 anos estão na luta, ou como o precoce Lobão diz “desde os três”.

No começo deste ano se encontraram, vindos da Gang 90 (Alice, vocal e mini sintetizador cássio), do Massa Falida (Odeid, baixo), do Acidente (Baster, baterista) e da Blitz (Lobão vocal, guitarra e Guto, guitarra). Hoje formam Lobão e Os Ronaldos, um grupo sem disco que não se denomina rock, mas que tem um lay-out rock. Que canta sendo bailarina. Que é guitarrista, tendo formação de baterista. Que gosta de todos os tipos de música. Que s define pela indefinição. Os Ronaldos são geração vídeo, são informação. Amorais, geniais, medíocres e pretensiosos, eles estão indo À guerra. E sobrevivendo.

Roll – Como vocês se conheceram?
Lobão – Eu estava apresentando Cena De Cinema (Nota: 1º disco de Lobão) no Morro da Urca, quando pedi uma canja ao Guto, que voltava dos Estados Unidos, e à Alice. Na ocasião não tinha tecladista, mas a Alice pegou o cássio e aprendeu todas as músicas em 48 horas. Aí fomos pro palco. Neste dia percebi que apesar de ter ótimos músicos na cozinha (baixo e bateria), precisava substituir. Tinha um clima ótimo entre eu, o Guto e a Alice, precisava estender isto. Aí peguei um catálogo, falei com o amigo do amigo do amigo e marquei uma audience – coisa que, geralmente nãose vê no Brasil – ouvi o Odeid e achei fantástico. Pensei num baterista-cultura-rock e me lembrei do Baster, irmão do Guto. Era ele mesmo.

Roll – Eu me lembro de em 1977 escutar que você já estava na batalha...
Lobão – Eu sempre fui profissional. Antes de me chamarem de Lobão, me chamavam Beethoven. Na aula perguntavam: “o que você vai ser quando crescer?”. Eu dizia: “sou músico”. Não dizia “vou ser”. Dizia “sou”.

Roll – Sua coisa sempre foi a bateria?
Lobão – Não. Tenho bateria desde os 5 anos, mas teve época que eu nem pensava em pôr a mão. Ia estragas meus dedos! Achava bateria um instrumento podre. Quando fui para o Vímana, desprezava aquilo, ia tocar só de chinfra. Queria era ir pro Conservatório Guerra Peixe, tocar com Nélio Rodrigues, aprender folclore com D. Aparecida, Ernesto Nazaré e Villa Lobos.

Roll – Muita gente que estava na luta há um tempão, só começou a aparecer agora, quando tudo começou a ganhar mais peso. Porque isto?
Lobão – Quando eu era criança achava cafona o brasileiro fazer rock, porque como todo culturismo brasileiro eles só sabiam fazer a moldura da coisa, e não o conteúdo. Eles tentavam tirar do rock asuasonoridade, mas faltava chinfra, muia onda, mas faltava uma coisa básica: informação. Informação é o básico para poder sobreviver. Se você tem um povo mal informado, você tem um povo pra ser subjugado por outro. Será que ninguém nota isto? Bom, então eu não sou uma pessoa burra. Nos Ronaldos, os bussines do rock temos uma porção de pessoas brilhantes. Nós resistimos a ficar só com a mnoldura da coisa, aprofundamos, começamos a resgatar não só a cultura brasileira, mas a informação geral de tudo o que ocorre no planeta. Mas aí os Bussines-men não tinham ouvido nada. Estava no Frank Sinatra, no máximo! (risos). Aos poucos foram percebendo que o rock vendia, e isto durou uma geração inteira.

Roll – Então o problema era a maturidade dos homens do poder?
Lobão – Não só. Foi maturidade nossa também. Ela dependeu do ridículo de várias pessoas que, como na Jovem Guarda, fizeram coisas geniais, mas totalmente naive (Nota: ???). Nós os absorvemos, absorvemos Rita Lee. Aprendemos a nos comportar, ter uma infra-estrutura e maturamos de maneira diferente. Agora estamos devolvendo tudo o que ouvimos, assim como a bossa nova devolveu tudo o que ouviu de jazz.

Roll – Mas porque a devolução tem que ser sempre bem humorada? E o Pink Floyd, o Jam, o Clash, que estão falando do fim dos tempos?
Lobão – Peraí. A princípio estamos numa zona nuclear neutra. Eles tem pavor da bomba cair na cabeça deles, mas eu não.

Roll – Sim, mas e os nossos dramas de pobreza intelectual e físico de fome, crise, burrice?
Lobão – Olha, os punks de Brasília estão aí para denunciar isto. Nós temos uma posição política a respeito, mas não vou perder meu bom humor. É como diz a letra do Guto, no “Dr. Raimundo”: “Se a mamãe tá doente / se o neném tá chorando / se você tá com dor de dente / ou tá desempregado / chame o Dr. Raimundo / ele tem a cura pra todos os grilos: do Joãozinho, do Antônio e do Murilo”. Dr. Raimundo é o drible. O Garrincha foi a coisa mais importante que existiu. Ele fingia que ia, mas não ia, driblava todo mundo. O rock brasileiro é assim: é deboche, inclui o bom humor e o mau humor. Inclui quebrar tudo e rir disso tudo. Eu tenho que rir, porque não sou eu e mais um grupo que vamos modificar o país. Eu não sou professor, nem guru, mas achgo: a revolução é o melhor caminho, fácil, bom e rasteiro. Mas já que ninguém tem coragem, então vai ser na base do bom humor.

Roll – E vocês podem falar palavrão?
Lobão – Não. A censura não deixa. Agora... eu nunca fui censurado.
Guto – Eu já. Fiz uma letracom Léo Jaime que dizia “comi 20 garotas num fim de semana”. Não passou na época. Teve outra: “conheci a Márcia se aplicando na farmácia”.

Roll – E quando vão lançar o disco?
Lobão – Isso é uma incógnita. Não sabemos. Estamos com o repertório pronto, mas tudo é muito nebuloso. Só sei que tem que sair, e vai se chamar Ronaldo Foi Pra Guerra.

Roll – Quem é Ronaldo?
Guto – Qualquer um pode ser um Ronaldo, ele é uma pessoa comum, Ronaldo é rock.
Lobão – Ronaldo é o cara que entrou em todas: “Andava pela rua, toda noite, todo dia, ouvindo notícias dos heróis que voltaram da guerra do Bananal / aí pintou a convocação da seleção / Jair pra Tostão valendo dólar, Pelé pegou na bola e invadiu como quis / invadiram o país / o que você me diz? / Ronaldo era o cara que tinha a maior tara por futebol / Ronaldo não tem time, ele mesmo se define, franco-atirador / Eu só quero ver gol! / Ronaldo é meio punk, já foi hippie, já foi junkie, pirou e foi pra aviação / entrou em crise, saiu do ar / Ronaldo foi pra ar sem brevê sem radar / Invadiram a terra / Ronaldo foi pra guerra / Ronaldo é futurista, é sensível, é artista, é meio gay / voava pelo mundo, um piloto vagabundo / caçando disco voador / passaram dois mil anos para os humanos não entenderem qual a razão / ainda não / dá sua própria existência e o valor de seu planeta / invadiram a terra / Ronaldo foi pra guerra.

Roll – O Ronaldo no fim das contas se dá mal ou se dá bem?
Lobão – Ah, ele nãose dá mal. Ele é infinito, pode continuar sempre: Ronaldo um, dois, três. O Ronaldo entra em qualquer uma,sem qualquer moral.
Guto – Ele é genial, mas não tem poderes, porque mostra tudo publicamente.

Roll – Como vocês se sentem só sendo conhecidos por duas músicas, só tendo dois carro-chefe?
Lobão – Olha, todas as minhas canções são feitas com a maior onda, para tocar no rádio. Se as pessoas só aproveitam uma coisa ou duas, azar o delas. Eu tenho tempo. Time is on muy side. Se nãoestourou tudo agora, estoura depois.

Roll – E a questão do ritmo? Você não acha que depois de um primeiro sucesso a tendência é pedir mais do mesmo modelo e ficar como a Rita Lee, em matéria de ritmo se pasteurizou muito?
Lobão – Se ela pasteurizada, é um problema dela.

Roll – Mas você não acha que o mercado quer impor ao público um tipo de ritmo, um tipo de rosto específico?
Lobão – O que o mercado quer é a gente. Tenho a maior convicção. Rock é falta de armação. Se não é puro, não é rock. Nós não somos pastiche de ninguém. Somos o que conversamos e pensamos durante anos.

Roll – O que vocês costumam escutar quando não compõem?
Todos – Tudo.

Roll – E em termos de MPB?
Lobão – Eu ouço Marina e ouço a Marina. Ela foi quem deu o kick-off que eu precisava pra começar a cantar quando comprei minha guitarra ano retrasado. Eu também adoro Tom Jobim, vou dedicar uma bossa nova à ele no próximo disco.
Baster – Eu gosto de sambãode morro. Adelson Alves, Ernesto Nazaré, Waldir Azevedo, Milton Nascimento, Paulinho da Viola, Lô Borges.
Guto – Eu ouço tudo. Desde que saí dos Estados Unidos e comecei a tocar profissionalmente com a Marina. Depois saí, fui pra Blitz, e comecei a entrar na filosofia Blitz...

Roll – O que é filosofia Blitz?
Guto – Irreverência.

Roll – Os Ronaldos tem a ver com a Blitz?
Guto – Temos, nós participamos da fundação, mas eles tem uma concepção muito mais teatral das músicas, não era o que eu pensava em matéria de musicalidade. Nós não podemos deixar a música em segundo plano, tanto é que eu comecei a me interessar por música ouvindo discos, e não vendo shows. Antes de mais nada eu me coloco como músico, mesmo que minhas letras sejam totalmente descritiva (“Você Não Soube Me Amar”, “O Machado e a Árvore”, “Dr. Raimundo”...).

Roll – O que vocês pretendem agora aprimorar mais no grupo? O visual, a batida, o ritmo?
Lobão – Nossas vidas, nosso ponto de vista. Nabase do drible, como o Mane.

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