Em junho de 1983 foi lançada a revista Mixtura Moderna, publicação carioca pioneira em colocar o jornalismo musical brasileiro definitivamente nos anos 1980. As reportagens traziam o que tinha de vanguarda naquele momento. Logo depois o nome mudou para Pipoca Moderna, mas a revista não durou muito. 4 meses depois, em outubro, surgiu a Roll, que foi nossa grande revista musical entre 1983 e 1985, quando surgiu a Bizz.
Mas voltando a esta reportagem, ela foi de suma importância para o que estava acontecendo em Brasília e foi a primeira vez que as cenas do eixo Rio-São Paulo, e outras capitais, souberam o que estava acontecendo na capital brasileira. No cerrado a empolgação entre o pessoal foi absurda, primeiro com a ida do Hermano à BsB e ansiedade em ver como a matéria ficaria e depois, quando saiu, parecia algo de outro planeta.
É preciso entender que, como disse no início, não havia mídia impressa dedicada ao rock do anos 80 no Brasil até a Mixtura surgir e assim que surge já logo no 1º número sai reportagem sobre o underground brasiliense!!! Era praticamente como lançar um disco ou poder dizer que já era músico profissional! Era algo fenomenal, realmente fora do comum!
Claro que haviam outras revistas, como a Som Três, mas uma revista segmentada com foco nas novidades da década de 80, naquele momento, só a Mixtura.
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Mixtura Moderna - Nº 1 - junho/1983
AI DE TI, BRASÍLIA
Por
Hermano Vianna
Da
capital do poder e do tédio, uma injeção de energia para sacudir as rachaduras.
O cerrado contra-ataca
Quem
diria! Os primeiros punks brasileiros nasceram em Brasília, à sombra do poder,
e eram quase todos filhos de figuras importantes do governo federal. Se você
for um punk paulista ou carioca que gastou suas poucas economias pra comprar a
Mixtura Moderna certamente estará com ódio desta afirmação. Você pode queimar a
revista ou, eu prefiro, escrever uma carta injuriada dizendo que eu não entendo
nada de punk. Tudo bem, eu já li vários fanzines paulistas que me dizem o que é
ser punk, o que é anarquia e até mesmo como usar uma suástica. Não tenho nada
contra as etiquetas sociais. Mas também não posso fazer nada se desde 77 alguns
brasilienses adotaram idéias, roupas e comportamentos punks. O que caracteriza
cada um desses itens? Quem tem a verdade do punk? Provocados desta maneira o
pessoal de Brasília me responde: punk não é uniforme, cara, é revolta E revolta
não é privilégio do proletariado paulista ou do subúrbio carioca.
Punk
é uma revolta sem planos de guerra
detalhados, sem líderes estrategistas.
Afinal, a proximidade do poder (se você ainda entende o poder como aquilo que
acontece no Palácio do Planalto) não torna nem mais fácil, nem mais
difícil,
combatê-lo. É necessário sempre reformular as táticas, renegar os rótulos,
destruir o lugar comum. Não é por um acaso que os brasilienses, anotem o que eu
estou dizendo, fazem o rock mais ousado deste
país.
Brasília
é, desde a sua criação, causa das mais variadas polêmicas. Odiada por alguns,
um sonho frustrado para outros, sua arquitetura continua a ser o símbolo máximo
da ânsia modernista da alma brasileira (desde quando o Brasil tem alma?). Somos
modernos e está acabado: vejam a capital que construímos. Não é de se estranhar
que a construção de Brasília tenha se dado num governo que tinha por lema fazer
o Brasil se desenvolver cinquenta anos em cinco. O que é ou pra quem serve esse
tal de desenvolvimento, ninguém sabe. Brasília tem 23 anos e nenhum plano
urbanístico pôde prever o que já aconteceu nesse meio tempo. É uma cidade
bonita? Não sei, num cartão postal até que impressiona. Mas morar Iá é barra
pesada. Brasília é fria, monótona, depressiva.
A
capital da esperança ocupa lugares de destaque em estatísticas pouco comuns: é
o local, no Brasil, onde ocorrem mais suicídios e onde se consome mais drogas.
A característica principal da população brasiliense é a sua transitoriedade.
Poucas são as pessoas que vão morar lá para sempre.
Todos
estão na cidade contando os dias que faltam para acabar o mandato ou chegar a s
férias, quando
voltarão para seus estados de origem. Por isso você não pode
formar uma banda de rock, por exemplo, sem levar em conta que o guitarrista vai
se mudar pro Rio no meio do ano, ou que o pai do
baterista foi convidado para
ser cônsul em Adis Abeba. Nada, exceto a mesquinharia da grande política
nacional, tem continuidade em Brasília. Mas esta situação começa a mudar. Não é
preciso nenhuma
campanha tipo I love
Brasília para saber que alguma
transformação já está ocorrendo. Um ouvido um pouco mais atento consegue
perceber a criação de um sotaque próprio de Brasília.
É
uma mistura incrível de entonações paulistas, cariocas, goianas, gírias de
todos os lugares do país. As primeiras gerações que nasceram e se criaram no
Distrito Federal já estão na casa dos 20 anos. São poucos, ainda, mas se os
juntarmos com as outras pessoas, que moram há poucos anos em Brasília, mas que
não estão a fim de ficar o tempo todo reclamando da falta do que fazer, já
teremos um bom número. Esta gang está produzindo filmes, poesia, música e
teatro que falam sobre sua cidade. Existe um número surpreendente de grupos de
rock já formados. Curiosa e sorrateiramente, Brasília adquire o título de
capital brasileira do rock’n’roll. A segurança da arquitetura brasiliense
apresenta suas primeiras rachaduras.
O
grande impulso inicial para a “explosão” do rock brasiliense foi a formação, em
78, do grupo Aborto Elétrico. Em Brasília é muito mais fácil você ter acesso à
s informações musicais de outros países. Tem sempre alguém viajando, um amigo
que mora no exterior e que pode mandar um disco ou o New Musical Express para
ler. Quando quase ninguém tinha ouvido falar de punk, o Aborto já tocava músicas
influenciadas por Pistols, Dammed, Clash, etc. E não era só isso. Numa letra
eles anunciavam, para quem quisesse ouvir, as suas intenções: “desde pequenos
comemos o lixo comercial-industriaI / mas agora chegou a nossa vez / vamos
cuspir de volta o lixo em cima de vocês/ somos filhos da revolução / somos
burgueses sem religião/ nós somos o futuro da nação / geração coca-cola”.O
Aborto tocava em qualquer lugar, ao ar livre, na frente das lanchonetes, onde
quer que pudesse conseguir emprestado uma tomada. Foram os anos mais radicais
do punk brasiliense. Outras bandas surgiram motivadas pelo sucesso não entendam
essa palavra ao pé da letra) do Aborto Elétrico. Os nomes: Dado e o Reino
Animal, Metralhaz, Os Vigaristas de Istambul (onde tocavam dois punks iugoslavos,
filhos do embaixador daquele país, Blitz 64, Blitx etc. Não consegui saber
direito a história destes grupos, alguns duraram poucos meses, outros só
conseguiram sobreviver no meio de uma troca interminável de músicos.
Hoje
os nomes mudaram e se multiplicaram. Você pode conhecer o s mais diversos
estilos do rock contemporâneo escutando grupos como Elite Sofisticada, Gestapo,
Las Conchas de Su Madre, Banda 69, Bambino e os Marginais, CIA, Fusão, Raízes
da Cruz. Você pode ainda se surpreender com o jazz do Artimanha, ou como som
inclassificável do Liga Tripa. Mas os grupos de rock mais interessantes de
Brasília são: Capital Inicial, Legião Urbana, XXX e Plebe Rude. O Legião Urbana
(Renato Russo, baixo e vocal; Marcelo Bonfá, bateria; Dado Villa-Lobos, guitarra)
tem apenas meio ano de vida, mas todos os seus componentes já tocaram em outras
bandas. Renato Russo é talvez o músico mais experiente do rock de Brasília.
Autor da maioria das músicas do Aborto Elétrico, com o final deste grupo ele
partiu para uma rápida carreira solo, acompanhado única e exclusivamente por
seu violão. Renato, dono de uma voz poderosa, é o primeiro grande cantor do
rock nacional. Também letrista de grande originalidade (“estou cansado de ouvir
falar em/ Freud Jung Engels Marx, intrigas intelectuais / rodando em mesa de
bar”), seus temas e imagens são uma reação direta às metáforas estúpidas que
dominaram a nossa música popular em todo o decorrer dos anos 70. Ninguém quer
mais ouvir falar em sensações das cordilheiras! A música do Legião Urbana está
muito próxima do som de grupos como Joy Division, Public Image e Cure, suas
principais influências.
O
Capital Inicial (Heloisa, guitarra; Loro, guitarra; Flavio Lemos, baixo; Fê,
bateria) já foi chamado pelas más Iínguas de Talking Heads do Planalto; pra
mim, isso é elogio. Mas o apelido não tem muito a ver. O Talking Heads é apenas
uma das influências, talvez de destaque, numa lista que inclui Cure, U2, Gang
of Four, funks e baião. O trabalho das duas guitarras é fundamental para a
caracterização do som do grupo. Nada de solos. Seu espaço é preenchido com
riffs funky e acordes preciosos. Os vocais são feitos principalmente (pois
todos cantam) pelos dois guitarristas.
As
letras, na sua maioria compostas pelo baterista Fê, que também foi do Aborto
Elétrico, são agudas
reflexões sobre o cotidiano da juventude brasiliense. Nada
escapa (“quero soltar bombas no Congresso / fumo Hollywood para o meu sucesso /
sempre assisto a Rede Globo / com uma arma na mão/ se aparece o
Francisco Cuoco
/ adeus televisão“), nem mesmo a figura de Dom Bosco, um místico que sonhou
profeticamente com a construção de Brasília (“O mal já está feito / deve
existir algum jeito / que tal
elegermos um prefeito / e matá-lo com um tiro no
peito?“).
Estas
letras já deram o que falar. É óbvio que a maioria não passou na censura. Mas
não fica por aí. O Plebe Rude (André Mueller, baixo; Philippe Seabra, guitarra:
Gutje Woorthmann, bateria; Ameba, Ana e Marta, vocais) foi preso em Patos de
Minas, no período pré-eleitoral do ano passado, quando, num show dividido com o
Legião Urbana, mostrou músicas como “Vote em Branco”. O vocal é o grande trunfo
do Plebe Rude. O contraste entre a voz azeda do lead Ameba e o agudo das
Plebetes, Ana e Marta, é explorado de uma forma super criativa. Absurdetes
perdem! O som da banda é bem mais simples que o da Legião o e do Capital
Inicial. Mas isso não é uma desvantagem. Torna sua música irresistível. É
impossível ficar sem dançar. As letras são também inusitadas. Uma delas fala
dos piratas do século XX, aqueles que andam com gravador e vídeo-cassete em
punho.
A única música de amor do grupo mistura declarações enamoradas com cenas
de sexo e karatê. Uma versão de “God Save The Queen” louva nosso presidente e
seus ministros. Mas o grande clássico o do grupo fica por conta de “Bandas
BSB”, uma irônica a autocrítica da cena de rock brasiliense (“eles pensam que
são tão originais/ imitando uma moda de fora”). Esta música termina com um
atestado de óbito: “o rock já morreu, agora você já sabe/ não pode ser
ressuscitado”. Você deve estar perguntando o que é que essas bandas têm a ver com o punk. Nem os próprios componentes
destes grupos sabem, ao certo.
Perguntados se ainda a se consideram punks eles
não respondem que sim, muito menos que não. O punk é uma grande influência, uma
fonte inesgotável de idéias e, talvez, um passado, do qual se lembram com
prazer. Os componentes do XXX (Alessandro, bateria; Bernardo Mueller, vocal;
Geraldo, baixo; Jeová Stemller, guitarra) não têm motivos para tantas dúvidas. Somos
uma banda punk sim, dizem, mas isso se você entender o punk como um estilo em
constante evolução. O som produzido pelo XXX é, dentre os grupos de Brasília, é
que mais se assemelha ao punk paulista ou carioca. Mas não se enganem pelas
aparências. Entre os seu s grupos preferidos, eles citam de cara bandas como
XTC, Talking Heads e vários grupos de ska. As letras podem também lembrar o
punk de São Paulo, mas refletem vivências completamente diferentes (“eu não
agüento mais / está monotonia / o tédio está tomando conta / como uma
epidemia”).
O
XXX foi o único grupo o brasiliense e a se apresentar na televisão local, num
programa chamado Brasília Urgente. As outras bandas já participaram de
trilhas-sonoras de filmes e peças independentes, principalmente do cinema
super-8 brasiliense. Desses filmes, o mais significativo é, sem dúvida, a
Ascenção de Quatro Rudes Plebeus, produzido pelo Plebe Rude quando ainda não
tinha o vocal feminino. O filme foi dirigido pelo baterista do Plebe, Gutje
Woorthmann, e por Helena Resende (também vocalista free lancer) e ganhou o prêmio
principal do último festival de Super-8 do DF. A estória do filme, que dura 40
minutos, gira em torno de uma banda de rock que fica milionária, é roubada pelo
empresário e termina como gari, levando um som com pás, enxadas e vassouras.
O
rock nacional vive um momento de grande excitação. Brasília é apenas um dos
focos desta
agitação musical. Centenas de bandas, surgida s em todos os cantos
do país, disputam avidamente um lugar ao sol. A imprensa, quem sou eu para
analisar suas secretas razões, entrou com tudo na
promoção do “novo fenômeno”.
Já produziram até mesmo um verão do rock! Mas escutar o tão propagandeado som
destes novos grupos é, com raríssimas e honrosas exceções, uma grande decepção.
A música é velha, sem
pique, uma sucessão interminável dos mais mamados
clichês, dos mais repetidos chavões. No meio de um clima estéril como este é um
alívio (e isso não é tietagem barata), escutar as bandas brasilienses.
Chamá-las de punks, pós-punks,
new wave, não me importa. Quem quiser que dê o
nome, quem quiser que invente o rótulo. Brasília, famosa pelo tédio que
acompanha seu cotidiano e pelas maquinações engenhosas do totalitarismo versão
tupiniquim, produz uma música surpreendente. Guerrilha sonora no
planalto
central? Nada disso, Brasília ainda é o cenário ideal para a ficção científica:
o cerrado contra-ataca.
Pra terminar: o Plebe
Rude, o XXX e o Legião Urbana ensaiam numa mesma sala, alugada a Cr$ 2 mil
cruzeiros por cabeça, de um edifício comercial de Brasília. É claro que só
podem começar a tocar (o horário é dividido fraternalmente entre as bandas
quando as atividades normais do edifício foram encerradas. O endereço da sala,
para quem quiser entrar em contato com essa troupe incendiária (inclusive o
Capital Inicial), é: Ed. Brasília Rádio Center, sala 2090, W-3 Norte (Setor de
Radiodifusão Norte) Brasília, DF, CEP 70000.
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Para ver fotos da Turma da Colina no Instagram (o maior acervo existente): abortoeletricooficial
Para escutar as influências diretas das bandas da Colina no Spotify: https://open.spotify.com/playlist/5JorMsk3fMH1uYsw3v6CMW?si=89e273e924404907
Para comprar O Diário da Turma 2ª edição: https://tratore.com/paulo-marchetti---o-diario-da-turma-1976-1986-a-historia-do-rock-de-brasilia-livro/p
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